Um basta à miséria
Enquanto o país assiste, atônito, à inacreditável guerra em torno do Orçamento
de 2021, em que parlamentares não abrem mão de suas emendas, de aproximadamente
R$ 50 bilhões, para obras que podem lhes render votos nas próximas eleições, o
Brasil real convive com mais de 125 milhões de pessoas que sofrem com a fome.
Seis em cada 10 brasileiros não têm comida suficiente para se alimentar
diariamente, quadro agravado pela pandemia do novo coronavírus.
A situação é mais dramática nas
residências com crianças de até 4 anos. Em 70,4% delas, mostra pesquisa
realizada pela Universidade Livre de Berlim, os moradores enfrentam algum nível
de insegurança alimentar. Em outras 20,5%, todos passam fome. Nos casos em que
as casas são chefiadas por mães solteiras e negras, a miséria se aprofunda: a
fome está presente em 25,5% dos domicílios, quase o dobro do visto em lares em
que a referência é um homem (13,3%).
Quando se leva em consideração apenas
os beneficiários do Bolsa Família, o nível de insegurança alimentar chega a
88,2% — o maior de todo o levantamento. Desses, 35% passam fome. Segundo o
Orçamento aprovado pelo Congresso, o Bolsa Família deverá consumir R$ 35
bilhões neste ano. Esses recursos, porém, são apenas paliativos ante as
dificuldades enfrentadas pelos mais vulneráveis.
Se todas as verbas destinadas por
deputados e senadores a suas emendas ao Orçamento fossem transferidas para o
Bolsa Família, não só os valores dos benefícios poderiam aumentar como mais
pessoas seriam contempladas. Contudo, os parlamentares preferem fechar os olhos
para a miséria da população desde que a construção de uma quadra de futebol ou
o recapeamento de uma rua em seus redutos políticos lhes garanta mais quatro
anos de mandato.
O descaso não se resume ao
Legislativo. O governo, a quem cabe elaborar o Orçamento — uma verdadeira peça
de ficção, que afronta, em boa parte, a legislação fiscal —, também nada faz
para mudar esse descalabro. Na verdade, o Executivo está mais preocupado em
satisfazer a gula de seus apoiadores do que em olhar para os necessitados. A
falta de disposição em rebater a miséria se reflete no auxílio emergencial,
visto como um alento por aqueles que não sabem se, amanhã, terão o que comer. O
benefício, que vigorou na primeira onda da covid-19 e fez a diferença para
muita gente, demorou quatro meses para ser retomado, mesmo assim, em valores
ínfimos, que estão sendo corroídos pela inflação.
O Brasil não pode mais aceitar
tamanho absurdo. As prioridades estão todas erradas. Os donos do poder olham
apenas para o próprio umbigo, garantindo a sobrevivência política, quando mais
da metade da população grita que está com fome. É urgente uma coordenação
nacional para que os brasileiros que mais necessitam voltem a ter esperança.
Neste momento, isso passa pela vacinação em massa contra a covid-19, que
permitirá ao país retomar o crescimento econômico, criar empregos e impulsionar
a renda. Qualquer caminho diferente disso é piorar o que já está muito ruim. É
crueldade.
Editorial do Correio Braziliense – Foto/Ilustração: Blog-Google