“O sistema patriarcal sofre abalos e vai ruir”
Em 70 anos de história, Renata Gil foi a primeira mulher eleita para a
presidência da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), uma das maiores
entidades de magistrados do mundo, com mais de 14 mil associados, a maioria
homens. “É indício de uma mudança que se processa em um nível mais abrangente —
ainda que incipiente. O sistema patriarcal sofre abalos e vai ruir futuramente;
hoje, no entanto, ele continua de pé”, constata, nesta entrevista ao Correio.
Não faltam motivos para ela lembrar que a luta é longa e deve ser
permanente. Segundo conta, no Judiciário, mais mulheres ingressam na primeira
instância. No entanto, no segundo grau e nos tribunais superiores, essa
incidência cai de modo drástico. Além de duradoura, a batalha deve ser mais
abrangente. Uma das principais bandeiras da gestão dela é fazer a associação
extrapolar a defesa das prerrogativas da magistratura. “Vivemos o mundo real e
somos sensíveis aos problemas do nosso tempo. O Brasil é um dos países em que
mais se mata mulheres. Não poderíamos ficar de braços cruzados diante desse
quadro.”
Em face do desafio, algumas ações se impõem. Uma delas é estabelecer a
paridade de gênero nas bancas de concursos para ingresso na magistratura, o que
já foi reivindicado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Outra obteve uma
primeira vitória: a aprovação do projeto “Sinal Vermelho contra a Violência
Doméstica”.
“Qualquer mulher que seja vítima de abusos, ameaças e agressões deve se
dirigir a algum estabelecimento de acesso público — como uma farmácia, por
exemplo — e exibir um X vermelho desenhado na palma da mão. A orientação para a
pessoa que recebe esse pedido de socorro é chamar a polícia imediatamente”,
explica.
Ser a primeira mulher em 70 anos a presidir a Associação dos Magistrados Brasileiros é um feito histórico e, imagino, muito desafiador. A senhora enxerga avanços significativos nas conquistas femininas no Brasil? As mulheres alcançaram, nos últimos anos, no Brasil e no mundo, direitos que, antes, diziam respeito apenas a homens — e espaços, até então, restritos à presença masculina. Temos mais mulheres na política, no Judiciário, no comando de grandes empresas; porém, o machismo ainda é dominante, infelizmente. Por isso, é tão importante que mulheres, depois de vencerem desafios decorrentes unicamente da condição de gênero, abram caminho para que mais mulheres cheguem aos mesmos lugares.
Sua chegada à presidência de uma entidade como a AMB pode ser entendida como uma ruptura em relação ao modelo antiquado e sexista em que só os homens ocupavam espaços de poder? A eleição de uma mulher à presidência de uma das maiores entidades de magistrados do mundo, com mais de 14 mil associados — a maioria, homens —, e que, durante 70 anos foi presidida apenas por eles, é indício de uma mudança que se processa em um nível mais abrangente — ainda que incipiente. No Judiciário, mais mulheres ingressam na primeira instância; por outro lado, no segundo grau e nos tribunais superiores, essa incidência cai de modo drástico. É verdade que o sistema patriarcal sofre abalos e vai ruir futuramente; hoje, no entanto, ele continua de pé.
Entidades corporativas devem se engajar em pautas sociais como o combate à desigualdade de gênero? Essa tem sido uma das nossas principais bandeiras desde o início da atual gestão. Percebemos que a associação, assim como os próprios juízes e juízas, tem uma missão que extrapola a defesa das prerrogativas da magistratura. Vivemos o mundo real e somos sensíveis aos problemas do nosso tempo. O Brasil é um dos países em que mais se mata mulheres. Não poderíamos ficar de braços cruzados diante desse quadro.
As mulheres precisam trabalhar mais do que os homens para obter o mesmo reconhecimento. A senhora enfrentou discriminação e preconceito ao longo da carreira? Enfrentei a discriminação e o preconceito que as mulheres da minha geração enfrentaram ao se tornarem magistradas: falo dos anos 1990. A nossa voz não tinha o mesmo peso que tem hoje. A nossa participação nos processos decisórios não era vista com naturalidade. Precisamos conquistar o respeito de forma impositiva muitas vezes.
A que atribui o pequeno número de mulheres em postos de direção na Justiça? Nos concursos públicos para ingresso na carreira, a quantidade de mulheres aprovadas cresceu nos últimos anos, o que não se refletiu nas escolhas dos nomes para os postos de direção. Esses processos de seleção obedecem a critérios subjetivos — menos técnicos, portanto —, de modo que, neles, predomina a ocupação masculina. Essa disposição de coisas, apesar de injusta e ultrajante, não é surpreendente, dado o longuíssimo período em que as mulheres têm vivido sob opressão.
Uma coisa ainda impressiona: as bancas dos concursos são compostas por uma maioria de homens. Isso vai mudar? A AMB está trabalhando com esse propósito. Solicitamos ao Conselho Nacional de Justiça que, por resolução, seja estabelecida a paridade de gênero nas bancas de ingresso à magistratura. Hoje, o que existe é uma recomendação. Reivindicamos a edição de uma resolução.
Juízas do DF se desfiliaram da AMB, inconformadas com a ausência de magistradas entre os conferencistas do 23º Congresso Brasileiro de Magistrados, em 2020. Houve avanço de lá pra cá ou a discriminação segue célere nos tribunais e entidades? A condução de uma entidade do porte da AMB implica acertos e erros — que, na verdade, revelam-se positivos na medida em que geram grande aprendizado. Esse episódio é lamentável. Obviamente, desde então, em todos os nossos eventos, temos observado a paridade de gênero. A discriminação ainda existe, em todos os ambientes. É necessário lutar contra ela todos os dias.
Como a AMB contribuiu para minimizar os efeitos da crise sanitária? A crise sanitária revelou a importância do serviço público para a nação. Não fosse o Sistema Único de Saúde, o desastre teria sido muito maior. A AMB tem atuado com cada vez mais afinco e assertividade em favor de pautas que valorizam os servidores públicos, porque temos a consciência de que o desmonte dos aparelhos do Estado prejudica a qualidade dos serviços oferecidos aos cidadãos. Fora isso, adotamos todas as medidas de distanciamento necessárias, suspendemos o expediente presencial nas fases mais agudas da pandemia e destinamos recursos para a assistência a pessoas que perderam renda. Só o Poder Judiciário, em todos os níveis, reservou, para o combate à pandemia, cerca de R$ 900 milhões.
Como ficam as grandes questões da humanidade no pós-pandemia? Torço para que a humanidade se dê conta de uma obviedade reiteradamente esquecida: somos todos membros de um só corpo; a dor que aflige o meu irmão é a minha dor. A pandemia, ao desmaterializar os nossos vínculos, escancarou-os. Todos perdemos pessoas queridas, independentemente da classe social. Daqui para frente, espero que tenhamos mais cuidado, mais preocupação e mais responsabilidade uns com os outros — e com o bem-estar coletivo.
Que ensinamento este momento nos deixa? Particularmente, aprendi que a vida é frágil e fugaz; que pessoas que amamos e estão do nosso lado podem partir de repente, sem qualquer despedida; que precisamos do apoio do próximo e que temos de oferecer o nosso acolhimento quando é o outro que sofre.
Como vê a perda de tantos brasileiros na pandemia? Os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões? Que exemplo no mundo poderia ser usado no Brasil? A pandemia trouxe desafios jamais imaginados. O Brasil tem dimensões continentais e o próprio Supremo Tribunal Federal estabeleceu a competência comum entre estados, municípios e União para tratar da questão. Certamente, melhores decisões poderiam ter sido tomadas. Se crimes foram cometidos, devem ser investigados e punidos. Todos os países que adotaram uma vacinação célere da população e que agora contabilizam queda nos índices de infecção podem nos servir de modelo. O importante, agora, é olhar para frente e centrar esforços na reconstrução do país e na manutenção da memória dos entes queridos que partiram.
A importância da união em torno de um projeto suprapartidário para mitigar os efeitos da pandemia nos próximos anos é possível? Os avanços legislativos significativos só acontecem no bojo dos consensos sociais. É possível e desejável que as lideranças políticas do país deixem de lado as diferenças eventuais para se unirem em torno de um propósito único: ajudar aqueles que foram vitimados pela crise e recolocar o país na rota do desenvolvimento.
Como a Justiça pode reagir mais rápido às demandas da sociedade? É possível reduzir os gargalos burocráticos de instituições e da sociedade? O Judiciário no Brasil é altamente demandado. E isso decorre da nossa condição de nação subdesenvolvida, em que as contradições sociais saltam à flor da pele. Enquanto persistirem as crises políticas e econômicas que tanto atrasam o desenvolvimento humano do país, a Justiça permanecerá sobrecarregada. A implantação do teletrabalho durante a pandemia foi uma medida que resultou no aumento da produtividade. O total de decisões emanadas de juízes, desembargadores e ministros, desde o início do período de quarentena, chega a quase 60 milhões. Também houve economia de recursos nesse período, que puderam ser redirecionados para o enfrentamento à covid-19, por exemplo. O planejamento é fundamental para a superação de todos os gargalos.
Um X na mão agora poderá salvar a vida de centenas de mulheres. A iniciativa da AMB de apresentar ao Congresso o projeto “Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica”, sancionado esta semana pelo presidente da República, funciona como, na prática? Qualquer mulher que seja vítima de abusos, ameaças e agressões deve se dirigir a algum estabelecimento de acesso público — como uma farmácia, por exemplo — e exibir um X vermelho desenhado na palma da mão. A orientação para a pessoa que recebe esse pedido de socorro é chamar a polícia imediatamente, porque a mulher que procurou ajuda está em situação de violência doméstica. No ano passado, firmamos convênio com mais de 10 mil farmácias, ainda antes da aprovação da lei. Agora, tivemos a adesão de outras instituições, como o Banco do Brasil. Com a aprovação da nova legislação, a nossa expectativa é de que os governos promovam campanhas permanentes.
Da discussão à aprovação da nova lei foram apenas quatro meses. Esse recorde na tramitação se deve a quê? Nós fizemos um intenso trabalho de convencimento junto às lideranças partidárias da Câmara dos Deputados e do Senado, que se sensibilizaram com a importância e a urgência da mudança que estávamos propondo na legislação. O texto chegou ao Congresso Nacional em março e, em julho, já aguardava sanção presidencial. A proposição teve uma receptividade tão grande no parlamento porque traz uma ideia sintonizada com as contingências do momento.
A criminalização da violência psicológica contra a mulher está prevista na nova lei. Como identificar esse tipo de abuso? A nova legislação traz exemplos práticos da violência psicológica contra a mulher. Há um rol de condutas tipificadas: ameaça, humilhação, manipulação, chantagem, ridicularização — mas a principal delas é degradar ou controlar as ações da mulher, seus comportamentos, suas decisões e crenças. Também entra aí a limitação do direito de ir e vir ou qualquer outra ação que prejudique a saúde psicológica da mulher, bem como a sua liberdade.
É comum, no Brasil, agressores de mulheres não serem presos — o que desestimula as denúncias por parte das vítimas. A nova lei resolve esse problema? A falta de prisão para os agressores é um problema gigantesco. Por qual razão a vítima vai denunciar se o criminoso não será preso? Uma mulher violentada só junta forças para sair dessa relação de subjugação se tiver certeza de que terá a devida acolhida por parte do sistema de Justiça. E o primeiro passo para resolver o problema é mudando a lei. Uma das novas providências é a pena de reclusão para o crime de lesão corporal contra a mulher. Outra previsão é o afastamento do agressor do lar quando há risco à vida ou à integridade física da mulher.
Neste mês, o assassinato da juíza criminal Patrícia Acioli completa 10 anos. O crime chocou o país. Há risco de mais magistrados serem mortos pelo crime organizado no Brasil? Por quê? O que deveria ser feito para impedir novos assassinatos de juízes? Tivemos casos de magistrados mortos pelo crime organizado, como a juíza Patrícia Acioli — de saudosa memória —, e isso fez com que tomássemos medidas de segurança mais efetivas. Há, ainda, juízes em situação de ameaça, que têm obtido a devida proteção. Casos como o da juíza Patrícia Acioli serão evitados se permanecermos em vigilância constante. Hoje, temos conseguido antecipar eventuais movimentos dos grupos criminosos. A capacitação dos profissionais que atuam na linha de frente é outra necessidade.
A senhora está preocupada com a debandada de quadros da magistratura, que não são repostos pelos concursos públicos. Qual a situação real? Muitos juízes deixaram a magistratura nos últimos anos, em especial, no período em que se votou a reforma da Previdência — quando ficou claro que a classe política investiria contra as prerrogativas das carreiras públicas. Muitos colegas jovens estão abandonando a magistratura. Em um contexto em que as vagas não são repostas, o que acontece é um congestionamento no Judiciário, pois há mais processos nas mãos de menos juízes.