Brasília, a extrósima
Os textos que Clarice Lispector escreveu sobre
Brasília são confinados, algumas vezes, ao território da excentricidade. Rubem
Braga fazia restrições às crônicas dela, mas considerou que os textos brasilianos
mereciam figurar entre os mais inspirados e melhores que Clarice produziu. Nos
tempos em que era professor, mostrei as crônicas de Clarice sobre Brasília e
uma aluna me perguntou: “Que droga essa mulher usou para escrever esse texto?”
Não tomou nenhum aditivo químico; Clarice foi
tomada pela estranheza de Brasília e vislumbrou essa cidade no fundo mais fundo
do seu sonho. Na passagem do centenário de nascimento da autora, garimpei uma
preciosidade no livro Um século de Clarice, organizado por Yudith Rosenbaum e
Cleusa Rios (Ed. Fósforo): o ensaio Brasília, a extrósima, de Carlos Mendes de
Souza.
“Extrósima” é uma palavra inventada por Clarice
para expressar a estranheza ante Brasília. Mas o mérito de Carlos Mendes é o de
revelar a sutil conexão entre Brasília e Clarice, Brasília e a obra de Clarice.
Ela escreveu, basicamente, dois textos sobre a cidade.
No primeiro, observa Mendes, Brasília aparece
associada à claridade e à cegueira, à gelidez do cristal. “A incidência da luz
crua realça o desterro. Fala-se da cidade soterrada que se ergue dos escombros.
Foi a natureza que se encarregou de escondê-la, até que reaparecesse um dia.”
Clarice evocou outras cidades ou mencionou lugares
e geografias em sua ficção. Mas nenhum suscitou uma identificação tão
perturbadora quanto Brasília. A ponto de, na tentativa de apreender a cidade,
mobilizar a linguagem do mito e da fábula fundadora da criação do mundo:
“Brasília é uma cidade redonda e sem esquinas”. E também transforma Clarice em
grega, romana e brasiliária.
A impressão de escrever sob o efeito de algum
alucinógeno decorre talvez do fato de que em Brasília depressa somos
confrontados com as linhas da fuga, como observa Mendes: “Muito depressa, a
narração vai-se deixando contaminar por aquela que desconcerta, aquilo que
escapa ao convencionalismo do relato de viagem ou da crônica”.
No entanto, paradoxalmente, a visita à Brasília
propicia o regresso ao lugar onde a exilada se reconhece: o Rio de Janeiro. Se
Brasília aponta para uma dimensão trans-histórica e transtemporal, a habitante
da terra, Clarice Lispector, pede também que haja lugar para o terreno
banalizado, observa Mendes.
E comenta: em oposição ao cimento armado, aos
edifícios monumentais, à solidez, ao terroso, à solenidade da abertura da
cidade nova, nascida do nada, surge a cidade espectral que se esfuma, a cidade
que levita, a flutuação, o difuso: “Estarei sendo levitada? Brasília sofre de
levitação”.
Brasília seria um território mítico que estabelece
conexões com A cidade sitiada, Um sopro de vida, A hora da estrela, entre
outras ficções de Clarice. É uma cidade forjada sob o signo da falta. A leitura
de Mendes nos empresta novos olhos para ler Clarice e Brasília. Mesmo sob o
signo da falha, ela se identifica com a cidade: “Brasília é arriscada e eu amo
o risco. É uma aventura: me deixa face a face com o desconhecido”.