Até meados do século 20, o universo da música clássica era, no Brasil e
no mundo, majoritariamente formado por homens. Uma realidade que vem mudando
nos últimos tempos. Contudo, nessa questão, Brasília sempre foi vanguarda.
Na Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro (OSTNCS), por
exemplo, são 21 mulheres integrantes em um corpo formado por mais de 80
musicistas – uma delas na função de spalla, músico-líder da filarmônica,
segundo posto mais importante depois do maestro, desde 2016 ocupado por Lilian
Raiol. Antes dela, o cargo já era de outra mulher, a violinista Kathia
Pinheiro.
Para celebrar o Dia Internacional da Mulher, será feita uma apresentação especial com obras clássicas de Beethoven e George Bizet – o autor da ópera Carmen -, às 20h desta terça-feira (8), no Cine Brasília. Na sequência, será exibido o filme Dulcina, de Glória Teixeira, que narra trajetória da atriz carioca Dulcina de Moraes, incentivadora das artes cênicas no DF, fundadora de importante escola de teatro na cidade.
“Buscamos sempre valorizar o talento de cada candidato de forma isenta,
independentemente de raça, cor ou sexo. Tendo em vista a característica
histórica de dedicação e disciplina das mulheres, elas vêm conquistando cada
vez mais vagas nos concursos na nossa instituição”, diz o maestro da OSTNCS,
Cláudio Cohen
E a musicista fala com conhecimento de causa. Em Brasília, a partir dos
anos 1990, começou a funcionar a Orquestra de Senhoritas, composta somente por
mulheres e liderado pela pianista Dora Galesso, falecida em 2018. Já a
flautista francesa Odete Ernest Dias foi uma das musicistas pioneiras da
capital, tendo sido peça-chave na fundação do Clube do Choro de Brasília e da
OSTNCS, entre os anos 1977 e 1980.
No cenário internacional, o maestro da OSTNCS, Cláudio Cohen, conta que,
no início da década de 1980, orquestras tradicionais, como as filarmônicas de
Berlim e de Viena, não permitiam a presença de mulheres em suas fileiras. Em
1982, a clarinetista alemã Sabine Mayer, para ser aprovada num teste com
isenção de julgamento, apresentou-se atrás de uma cortina. Passou na prova de
fogo, mas encontrou resistência de seus pares fraques, sendo barrada numa
votação de músicos da Orquestra de Berlim por 73 votos contra 4.
“Hoje a Orquestra de Berlim já conta com um número maior de mulheres,
mas ainda em uma porcentagem muito baixa em relação aos homens, e a Orquestra
Filarmônica de Viena só começou a admitir mulheres em fevereiro de 1997: dos
seus 126 integrantes, menos de 10 são mulheres”, constata o maestro, que tem
outra visão sobre o tema.
“As coisas que eu mais gosto de tocar são a nossa música para outras
culturas e povos. Sinto-me como uma embaixadora da nossa música toda vez que
tenho essa oportunidade”, afirma a violinista Lilian Raiol
“Participei das bancas e organização dos últimos três concursos da
OSTNCS – em 2000, 2005 e 2016. Buscamos sempre valorizar o talento de cada
candidato de forma isenta, independentemente de raça, cor ou sexo. Tendo em
vista a característica histórica de dedicação e disciplina das mulheres, elas
vêm conquistando cada vez mais vagas nos concursos na nossa instituição”,
relata o maestro.
Na mais recente formação, dos 25 músicos contratados, nove eram
mulheres. Na OSTNCS desde 2005, Lilian Raiol é um exemplo clássico de talento,
dedicação e resiliência. Nascida no Amapá, filha de pais paraenses, desde os
cinco anos ela vive na capital. A música cruzou seu caminho graças à relação
intimista da família com essa arte.
“Vim de uma família musical, sobretudo por parte de pai, que desde
pequena sempre me ensinou a cantar”, conta. “Meu contato com música clássica se
deu quando passei a estudar na Escola de Música de Brasília (EMB). Comecei do
zero, fiz teoria, flauta doce e, quando era para escolher o instrumento que me
dedicaria, sempre quis tocar violino.”
“Ninguém entende por que não fui para os Estados Unidos, mas nunca quis
sair de Brasília, sempre quis ficar aqui, perto da minha família, trabalhar na
orquestra da minha cidade. Eu amo essa cidade, foi uma opção de vida da qual
não me arrependo”, afirma a harpista Cristina Carvalho
O primeiro violino que ela viu foi na orquestra de uma igreja da 611
Sul. Amor à primeira vista, garante. “Costumo dizer que foi o violino que me
escolheu”, brinca. Até chegar à condição de spalla da OSTNCS, muitos caminhos
foram trilhados, e um deles a levou até Pequim, na China, em 2002, acompanhando
o pai, de serviço no país oriental.
Foram dois anos de aprendizado e imersão na música tradicional local.
“Uma fase rica, que adicionou muito ao meu conhecimento musical, não tinha
conhecimento da música chinesa antes de ir para lá. Fora isso, tive
oportunidade de ver muitas apresentações marcantes”, conta.
Entre suas preferências musicais clássicas, ela não esconde o fascínio
pelos brasileiros Villa-Lobos, César Guerra-Peixe e Camargo Guarnieri. “As
coisas que mais gosto de tocar são a nossa música para outras culturas e povos.
É algo que me arrepia. Sinto-me como uma embaixadora da nossa música toda vez
que tenho essa oportunidade”, orgulha-se.
Som
dos anjos: Filha do maestro Emílio de César,
a harpista da OSTNCS, Cristina Carvalho, 48 anos, carrega a música clássica no
sangue. Aos 6 anos, já tirava os primeiros sons do piano, que aprendeu a tocar
com mãe, na Alemanha, onde o pai fazia curso de regente. A opção pela harpa, o
instrumento tocado pelos anjos, arcanjos e querubins, é um mistério que nem ela
explica.
“Não sei se foi por causa de um filme ou se do nada, resolvi que queria
aprender harpa, só sei que, aos 11 anos, comecei a tocar”, lembra. “Na época
nem tinha professora de harpa em Brasília, tive sorte de ter chegado alguém do
Rio de Janeiro e entrei como aluna extra, já que a turma já estava completa.”
Com os cursos de piano e harpa no currículo, aos 14 anos, Cristina
Carvalho entrou para a OSTNCS como música substituta, cobrindo temporadas da
filarmônica, até ser aprovada em concurso em 2000. Passou a integrar o quadro
como a única harpista do grupo. Um feito único, raro e a realização de um
sonho.
Priorizou Brasília, abrindo mão de uma bolsa para estudar música em
Indiana, nos Estados Unidos. “Ninguém entende por que não fui para os Estados
Unidos, mas nunca quis sair de Brasília, sempre quis ficar aqui, perto da minha
família, trabalhar na orquestra da minha cidade”, explica. “Amo esta cidade,
não tem o que falar, foi uma opção de vida da qual não me arrependo”.
Do
rádio à OSTNCS: Era um
aparelho de rádio que ficava na cozinha e tocava, diariamente, música erudita.
Por meio daquela pequena caixa que emitia ondas sonoras, vindas de São Paulo,
diretamente para o litoral de Santos, a pequena Renata Menezes ia assimilando
um estilo musical que, mal sabia, ficaria atrelado para o resto da vida à sua
carreira profissional.
“Minha relação com a música se iniciou por influência do meu pai, que
era clarinetista, saxofonista e tocava música popular, choros com big band em festas noturnas, bailes”, reporta hoje
a clarinetista da OSTNCS. “Apesar de tocar na área de música popular, ele
sempre amou música erudita. Tenho há anos um rádio retrô na cozinha que me
remete à infância, a essas lembranças”, resgata, com nostalgia, a musicista.
A escolha pelo instrumento popularizado por artistas como Benny Goodman,
Kenny G e, veja só, o cineasta Woody Allen, resvala em limitações didáticas e
financeiras. “Foi falta de opção de professor; o primeiro instrumento que quis
tocar foi o violino, mas não tinha quem ensinasse na época, em Santos”, desfia.
“Tentei flauta transversal, não deu muito certo. Quis estudar oboé,
fagote, e meu pai disse que eram instrumentos muito caros e que não teria como
comprar. Foi então que, por último, escolhi a clarineta, pois já tinha em casa
disponível, acabou dando certo”, continua.
Hoje, com 48 anos, bacharel em clarineta pela Universidade Estadual
Paulista (Unesp) e licenciada pelo UniCeub, ela colhe os frutos dessas
experiências sensoriais, que culminou com sua vinda para Brasília, em 2000, ao
ser aprovada em concurso.
“São 22 anos em Brasília, e, para mim, fazer parte da OSTNCS é motivo de
muito orgulho. Meu sonho sempre foi tocar em orquestra sinfônica. Estudei
muito, abdiquei de muita coisa para chegar aonde cheguei e não me arrependo,
venci!”, diz, orgulhosa. “Fazer parte de uma orquestra não é algo fácil. Embora
ainda sejamos minoria, isso também é mais um motivo de orgulho que tenho”.