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A negra Iaiá e a boneca de pano

A negra Iaiá e a boneca de pano

Mora na minha cabeceira uma boneca de pano. Tem a idade do antigamente. Quem a criou foi a negra Iaiá, de Goiás Velho. Ninguém entende por que bibelô tão pálido, de tecido desbotado, cosido com pontos rudes de linhas toscas, cabelos retorcidos como dreads, sobrancelhas, boca e nariz riscados a carvão, ninguém entende por que ela ocupa lugar tão nobre ao lado do meu dormir.


Cobicei a boneca de pano numa ida à Cidade de Goiás em 2005. Andarilhava por uma rua distante do centro histórico, quando vi uma senhorinha negra sentada numa cadeira tão velha quanto ela, na varanda de terra batida de uma casa torta e esquecida. Pedi licença pra entrar na morada daquela mulher tão antiga quanto a memória da escravidão. Pelo modo como se levantou e caminhou até a porta, percebi que ela enxergava muito pouco. A dona da casa disse que tinha mais de 90 anos, não sabia ao certo. Morava sozinha.

Fiquei diante de um sofá puído e esburacado, de uma mesa de madeira, de uma prateleira com a imagem de uma santa (já não me lembro qual) e diante da bonequinha de pano que, por falta de pernas, sustentava o corpo num copo de massa de tomate. O copo estufava a roda da saia da boneca de pele branca. Sem prurido, pedi à senhorinha o brinquedo de pano. Por alguma razão, eu precisava daquela boneca. Ela me dizia coisas fundantes porém indecifráveis.

Faz 17 anos que a boneca de pano vigia o meu sono. Antes azul, bem antes mesmo, a roupa da formosa está quase branca, esmaecida, diáfana (mas os lábios de linha continuam rosados como antes). Sempre altiva, com sua lonjura calma, quase sempre com leve sorriso de quem está vendo tudo. Ela é a anunciação de alguma coisa que faz todo sentido pra mim.

Minha boneca de pano foi feita com os escassos recursos de quem vivia à margem das coisas compradas prontas, de quem aproveitava roupas rasgadas para costurar bonecas de cabelos longos e laço rosa na cintura. De vez em quando a doçura me pede um banho, agora mesmo caiu uma gota de parafina da última vela que acendi, mas temo que a princesa se dissolva na água e sabão.

Iaiá me contou, naquela visita de quase 20 anos atrás, que foi criada pelos patrões para servir de empregada doméstica, sem salário, sem direitos trabalhistas — escravizada pelo Brasil moderno numa cidade do Brasil antigo. Já sem forças para o trabalho, Iaiá recebeu de um filho do patrão o direito de morar na casinha de adobe nos arredores da cidade tombada como patrimônio da humanidade.

A boneca a quem Iaiá deu o nome de Jurema é meu fio imemorial com a sabedoria silenciosa das mulheres escravizadas.

A bonequinha que vela meu dormir, meu acordar e meu existir me conta coisas esquecidas de mim mesma. De que eu não começo nem termino no meu agora, que a tecnologia é sedutora mas vazia como boneca de plástico, que os pontos feitos à mão são bordados da artista quase cega, que alguém inventou uma boneca a partir de quase nada e cuidou da preciosa até que eu precisei tanto dela que Iaiá me deu Jurema pra mim.

P.S. Uma primeira versão dessa crônica foi publicada em 4 de março de 2012. Dez anos depois, a boneca que parecia quase morta de tão velha e puída continua na minha cabeceira. Ela sorri quando eu sorrio, me olha fundo quando procuro profundezas, evita meu olhar quando eu pressinto que pisei na bola. E às vezes salta misteriosamente do copo de massa de tomate que lhe serve de corpo.

Quando me despedi de Iaiá, ela me disse pra eu nunca mais esquecê-la. Nunca mais, Iaiá. Sempre que um querido ou uma querida está em algum apuro grande ou eu mesma preciso de proteção e quentura, acendo uma vela pra Iaiá. É Jurema, mas é Iaiá.


Conceição Freitas – Correio Braziliense


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