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Meio triste, meio atordoado, Lucio Costa manda notícias

Meio triste, meio atordoado, Lucio Costa manda notícias

Queridas e queridos brasilienses, os que nasceram na capital que eu inventei e os que a escolheram para morar ou mesmo os que vieram para Brasília sem muita vontade. Soube que mais da metade dos 3 milhões de habitantes do Distrito Federal é brasiliense de nascimento. Um milhão e meio de pessoas que são a síntese do Brasil, a mistura de todos os Brasis. Mas algo deu errado na “capital da esperança”, como disse André Malraux, aquele francês inquieto e prodigioso.

Não sei o que ele pensa agora, ainda não cruzei com ele por aqui. Digo por mim: estou meio desesperançado. O que terá acontecido com a cidade que Juscelino decidiu construir, que Oscar, eu, dezenas de arquitetos, centenas de engenheiros e mais de 60 mil candangos construímos com tanta fé na vida, no que o Brasil tem de melhor, com tanta fé na humanidade e nos mais preciosos valores humanos?

Embora tenha nascido na França e passado a infância fora do Brasil, me sinto equilibradamente brasileiro. Filho de um baiano com uma amazonense, não estou preso a nenhum regionalismo, não sou daqui nem dali. Estou em casa seja nas orlas do Atlântico ou na Chapada dos Guimarães, do Oiapoque ao Chuí, como se dizia no meu tempo.

Talvez não pareça, mas morei no interior do Brasil, vi de perto o homem do campo no seu trabalho de enxada. Acompanhei-o légua e meia até o cercado onde mora de favor. Entrei na casa onde vive: chão de terra batida, paredes de taipa, telha soltas, sem argamassa. Assisti à janta, vi o que eles comem. À noite, senti o vento soprar pelas frestas, e a umidade subir do chão, e vi como dormem todos juntos.

Vi tudo isso ainda jovem, antes dos meus 30 anos. Ou seja, há quase um século. Não mudou muito. E em Brasília mudou para um pouco pior, tenho de reconhecer. É estarrecedora a desigualdade entre a renda total de uma mansão no Lago Sul, de R$ 31 mil por mês, e de quem mora no Sol Nascente, de R$ 2 mil. Ou do Sudoeste comparado com a Fercal ou do Park Way com o Itapoã.

O que me faz lembrar dos casarões do tempo da escravidão. Como aquelas casas grandes imensas funcionavam sem banheiro (nem interno nem externo), sem água encanada, sem luz elétrica? Era porque o funcionamento dessas casas dependia dessa mistura de coisa, de bicho e de gente, que era o escravo. Era ele que fazia a casa funcionar – havia negro para tudo, desde negrinhos à mão para recados, até negra velha, babá. O negro era esgoto; era água corrente no quarto, quente e fria; era interruptor de luz e botão de campainha; o negro tapava goteira e subia vidraça pesada; era lavador automático; abanava que nem ventilador.

Olhando para esse passado tenebroso, vemos que muito mudou, mas ainda pouco para o que precisa ser mudado de modo que sejamos um país que ofereça a todos condições de vida digna. E, aqui nesse mundo onde estou, olhando para Brasília (e o Brasil), me pergunto: por que o morador do Lago Sul e o do Sol Nascente votaram do mesmo jeito no primeiro turno das eleições?

Mesmo os do Lago Sul, a cidade com menor número de negros do DF? Será que o fio da história, que conduz nossos valores, se quebrou? Sem nenhuma veleidade, lhes digo que Brasília, com todos os seus equívocos e não são poucos, nasceu de um desejo pulsante de aproximar os Brasis tão desiguais, de nos fazer acreditar que somos um país único no mundo, por suas riquezas sobre a Terra e dentro dela e pela força inimaginável dos brasileiros, dos escravizados e dos que já estavam aqui mais de mil anos antes de os portugueses chegarem.

Também não tenho cruzado com Juscelino nem com Oscar nem com aquele cara incrível, o Sayão (mesmo depois de morto, continua bonitão!). Como todos os outros que deram parte de sua vida ou mesmo deram a própria vida para que Brasília existisse… eles devem estar perplexos! Somos um povo de luta, lutamos desde que nascemos. Foram lutas demais, sofrimento demais, erros demais, ao ponto de agora estarmos perigando (me perdoem a expressão), de estarmos perigando perder todo o pouco que conquistamos em meio milênio de existência.

O risco não é apenas para nós, brasileiros, é para o planeta. Aqui de cima, confortavelmente sentado na minha chaise longue, olho para a Amazônia e temo por ela, temo por toda a humanidade. E mesmo eu, que acredito ter feito o melhor que pude em minha existência viva, queria muito voltar a essa danação de viver para ajudar, do jeito que fosse possível, a impedir que o Brasil venha a ser a maior ameaça à vida dos humanos na Terra. Parece exagero, mas não é. Creiam.

Com meus sinceros votos de que esse pesadelo acabe, Lucio Marçal Ferreira Ribeiro de Lima Costa.


Conceição Freitas – Correio Braziliense




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