Dezembro é mês peculiar. Tem 31 dias, mas 29 deles são apenas
coadjuvantes de dois outros: réveillon e Natal. Essas duas comemorações têm
seus contrastes. A virada do ano é celebração em público, de pessoas que não
necessariamente se conhecem. Já o Natal é festa em casa, com parentes e pessoas
próximas.
Réveillon é gasto consigo mesmo: roupas, acessórios e convites para
festas. Natal é sinônimo de esforço pelos entes queridos: crediários para
comprar presentes, despesas extras com comidas, bebidas e decoração. Tudo para
reunir em casa, num momento especial, a família.
E o que é uma família? É apenas aquela formada por mãe, pai, filhas e
filhos? Aquela baseada na união de uma mulher e um homem? Aquela cujas crianças
vieram dessa união? Seria esse modelo, baseado em um casal heterossexual e
cisgênero, a referência a ser seguida pela sociedade?
Claramente a resposta é não. A despeito de seus muitos e fervorosos
defensores, esse arranjo único não define a família. Quando muito, aponta uma
de suas possibilidades. Famílias são formadas por uma mãe ou pai solo com suas
crianças; por um casal (homo ou heterossexual, cis ou transgênero); por um
casal com filhos adotados e tantas outras combinações. Elas não se definem
unicamente por critérios biológicos, mas por vínculos afetivos, e não perdem sua
essência por terem formas não usuais.
Suas composições, aliás, não admitem hierarquias entre si. Nenhuma é
superior ou inferior a outra, principalmente se o parâmetro de comparação for o
gênero ou a orientação sexual de seus integrantes. O que importa, de fato, são
os relacionamentos saudáveis, amorosos e respeitosos dentro desse círculo
social.
Devemos sempre nos lembrar de que não há lares perfeitos, simplesmente
porque não há pessoas perfeitas. Conflitos entre parentes, consanguíneos ou
não, integram as relações humanas e acontecem independentemente do gênero ou da
orientação sexual das pessoas envolvidas.
Num país marcado por uma profunda homotransfobia, deveríamos admirar as
pessoas LGBTQIA que lutam por formar uma família, gente cuja existência é
ameaçada diuturnamente, mas que está disposta a enfrentar não só o preconceito
e a violência sociais, mas também o desafio da parentalidade.
Sendo o Natal a festa da família por excelência, é de bom tom
lembrarmo-nos de sua função: celebrar o nascimento de Jesus Cristo. Será que
ele, que professava amar ao próximo como a si mesmo, condenaria qualquer união
em que as pessoas se amem? Ele se preocuparia se uma criança tem dois pais,
quando há tantas sem nenhum? Ele recriminaria uma mãe transgênero, que cuida da
família como qualquer outra mãe?
Certamente não. Jesus, como o grande humanitário que era, abençoaria
essas pessoas. E se preocuparia, sim, com as famílias que passam fome; com pais
e mães cujos filhos e filhas têm as vidas roubadas pela desigualdade, a
violência e a marginalização; com a miséria que subtrai a dignidade das
pessoas. Essas, sim, seriam questões que lhe ocupariam o tempo.
Famílias de refugiados (como a dele mesmo foi), padecendo em uma terra
nova e desconhecida; famílias de negros, sofrendo preconceito pelo tom da pele;
famílias de moradores de rua, atacadas por não terem onde morar. Essas receberiam
a atenção e o cuidado que tanto merecem.
As preocupações do Nazareno já cuidavam de direitos humanos antes da
existência desse conceito. Elas buscam maior equidade entre as pessoas; a
mitigação do sofrimento e, principalmente, o respeito à dignidade humana. Esse
cuidado cristão transborda para nosso Estado laico: a dignidade do ser humano é
fundamento constitucional de nossa República. Um atributo presente em cada
pessoa e em cada família, nas suas mais diversas conformações.
Nosso papel como cidadãos é criar um ambiente favorável à aceitação e ao
desenvolvimento de qualquer núcleo familiar; é acolher a pluralidade defendida
em nossa Constituição, é promover a integração social dos múltiplos arranjos
familiares brasileiros.
O Natal é celebração da família. De qualquer uma. Todas elas devem caber
nele e no dia a dia deste país. Precisamos trabalhar em conjunto para
transformar esse ideal em realidade. Esse é o fundamento desta nação e a
essência do espírito natalino.