Era
uma quarta-feira, o Maracanã estava lotado de torcedores, na expectativa do
milésimo gol de Pelé, depois de uma contagem regressiva na qual o rei havia
frustrado os torcedores, ao jogar na Paraíba e na Bahia. O zagueiro vascaíno
Renê cometeu um pênalti na entrada da área, aos 33 minutos do segundo tempo.
Pelé aprendera com Didi, na seleção brasileira da Copa de 1958, a dar a famosa
paradinha, depois de três passos, antes de bater na bola e deslocar o goleiro.
O argentino Andrada até saltou no canto certo, mas não evitou o gol. Era o dia
19 de novembro de 1969. O Santos venceu o Vasco por 2x1.
Depois
do gol, o jogo parou por 20 minutos. Aos prantos, carregado pelos colegas, Pelé
falou aos repórteres: "Pelo amor de Deus, olha o Natal das crianças, olha
o Natal das pessoas pobres (…) Pelo amor de Deus, vamos pensar nessas pessoas.
Não vamos pensar só em festa. Ouçam o que eu estou falando. É um apelo, pelo
amor de Deus. Muito obrigado". Naquele 19 de novembro de 1969, em pleno
regime militar, muitos viram demagogia na declaração, mas ela foi fruto de um
episódio que ocorrera dias antes.
Pelé
havia saído do treino em Santos e viu uns garotos tentando roubar um carro
perto do seu. Deu uma bronca nos meninos e mandou que fossem embora, sem roubar
carro nenhum. Ao comemorar o gol, lembrou-se da dificuldade de se crescer e se
educar no Brasil. "Foi a primeira coisa que me veio à cabeça",
explicaria, 50 anos depois. Pelé marcou 1281 gols na sua carreira. Quando
criança, foi entregador, engraxate e vendedor de picolés, como muitas crianças
fazem até hoje.
A
preocupação de Pelé permanece atual. Há muitas crianças em situação de risco no
Brasil, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) sobre
Trabalho de Crianças e Adolescentes. Um dos problemas mais graves é o trabalho
infantil. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registrou
1,768 milhão de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos trabalham em todo o
território nacional, o que representa 4,6% da população (38,3 milhões) nesta
faixa etária. Esses dados são os mais recentes, porém de 2019.
Amanhã
é o Dia Mundial contra o Trabalho Infantil, instituído pela Organização
Internacional do Trabalho (OIT) em 2002, data da apresentação do primeiro
relatório global sobre o trabalho infantil. De acordo com o Fórum Nacional de
Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), entre os anos de 2016 a
2019, o contingente de crianças e adolescentes trabalhadores infantis no Brasil
havia caído de 2,1 milhões para 1,8 milhão. Entretanto, com a pandemia e a
desarticulação de políticas públicas no governo passado, a situação pode ter se
deteriorado.
Trabalho
infantil é toda forma de trabalho realizado por crianças e adolescentes abaixo
da idade mínima permitida, de acordo com a legislação de cada país. No Brasil,
até 13 anos, qualquer trabalho infantil é proibido; de 14 a 16, admite-se a condição
de aprendiz; de 16 a 17, são proibidas as atividades noturnas, insalubres,
perigosas e penosas, consideradas prejudiciais à formação intelectual,
psicológica, social e/ou moral do adolescente.
As
piores formas de trabalho infantil definidas pela OIT são as de escravidão ou
práticas análogas: venda e tráfico de crianças, sujeição por dívida, servidão,
trabalho forçado ou compulsório (inclusive recrutamento forçado ou obrigatório
de crianças para serem utilizadas em conflitos armados); utilização, demanda e
oferta de criança para fins de prostituição, produção de pornografia ou
atuações pornográficas; utilização, recrutamento e oferta de criança para
atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de entorpecentes
conforme definidos nos tratados internacionais pertinentes; trabalhos que, por
sua natureza ou pelas circunstâncias em que são executados, podem prejudicar a
saúde, a segurança e a moral da criança.
O
trabalho infantil é uma herança do passado colonial e escravocrata. Além de ser
uma forma brutal de exploração de mão de obra, é um fator estrutural de
desigualdade social, porque afasta as crianças da rede escolar ou compromete
seu aprendizado de forma quase irreversível. Muitas vezes, as crianças são
exploração pelos próprios pais. Identificar e denunciar a exploração do
trabalho infantil é uma forma de combater o problema.