Quando
da idealização da nova capital, o urbanista Lucio Costa parece ter
experienciado uma espécie de epifania, ou ideias iluminadas. Numa inspiração
divina, passou a compor seu projeto, tal como um músico que elabora uma
sinfonia. Buscou, como preocupação central de seu trabalho, implantar entre as
áreas cheias, ou que receberiam construções e rodovias, o mesmo porcentual de
áreas vazias, ou ocupadas apenas por vegetação.
Mais
do que seguir as diretrizes pregadas pelo Modernismo na arquitetura, que
propunham a construção de cidades jardins, com setorização de serviços, o
urbanista anteviu em seu projeto, todo ele feito à mão em seus pormenores, que
essa composição arquitetural deveria, para obedecer os conceitos que regem uma
composição harmônica e bem resolvida, intercalar entre os sons, ou seja, entre
as construções, áreas proporcionais destinadas ao silêncio e ao vazio,
representado pelos jardins e gramados.
Não
fosse o silêncio entre as notas, não haveria composição que pudesse ser
apreciada por quem quer que seja. A importância do cheio corresponde à
imponência do vazio. Sem um conceito simples como esse, mas de difícil
entendimento por muitos, não haveria como erguer uma cidade como Brasília,
patrimônio cultural da humanidade.
Falar
em solidão ou em desperdícios de áreas é fácil, quando não se entende ou se
despreza a proposta do autor. Preencher esses espaços de paz e de transição,
com moradias, comércios e outras construções, como pretendem os empreendedores
de imóveis e outros especuladores, que não enxergam senão lucros imediatos e
outras vantagens, é o meio mais rápido de destruir esse patrimônio que é de
todos e que é único no mundo.
A
ocupação desses espaços vazios, sejam eles parques ou simples áreas verdes
espalhadas pela área central da capital e pelo seu entorno, interessa apenas a
uma minoria, que não sabe o que é e qual o significado de uma obra sinfônica.
Quase todos os dias, se ouvem notícias de áreas que são invadidas ou perdidas
para grileiros e outros profissionais do crime.
O
crescimento desordenado da cidade, açulado por uma casta de políticos locais
sem compromisso com a capital, aumenta a pressão pela ocupação das áreas verdes
e todo e qualquer espaço que eles considerem vazios e desocupados.
As
ações do governo, juntamente com os movimentos originados na própria Câmara
Distrital, oscilam ora entre negligência, ora em incentivos abertos a essas
ocupações. As discussões sobre novos ordenamentos urbanos da capital, com
presença, em sua maioria de pessoas alheias ao conceito de Brasília, só
resultam na modificação da carta original que deu sentido à cidade, criando-se
novos assentamentos, a maioria sem projetos de impacto ambiental e de
infraestrutura, tudo feito para atrair e agradar eleitores.
A
bola da vez é o Parque das Garças, situado na extremidade da Península Norte,
entre as QI e QL 16, uma área com mais de 16 hectares, com flora e fauna
próprias e uma vista de tirar o fôlego. Graças à união dos moradores dessa
região e depois de uma luta de anos, a área foi transformada em parque e todos
os dias recebe centenas de visitantes.
Agora,
alguém, talvez dentro do GDF, teve a insana ideia de transformar aquele
paraíso, em mais uma área de construção, dividindo a terra em vários
parcelamentos para a obras de unidades imobiliárias, com lotes para comércio,
estacionamentos, bicicletário, vias de circulação, e outros espaços.
A
ideia maluca é criar área semelhante a que existe hoje no chamado piscinão na
estrada do Paranoá, onde a instalação de bares, com venda de bebidas alcoólicas
faz a alegria dos frequentadores locais e o terror de quem paga o mais alto
IPTU da cidade, que é obrigado a triplicar os cuidados nas estradas diante de
tantos motoristas alcoolizados.
Naquele
espaço a exploração das áreas é feita por particulares que lá estão desde a sua
criação, servindo para o comércio de bebidas e para lucro de dois ou três
comerciantes. O piscinão é conhecido hoje por ter se transformado em uma área
onde as brigas, afogamentos e bebedeiras ocorrem com frequência, o que acaba
afastando muitas famílias do local, temerosas com as confusões provocadas pelos
beberrões. Os benefícios da região ainda não chegaram para quem paga altos
impostos.