Historiadores e outros observadores situados na popa da barca da vida,
essa nau que navega sem descanso, possuem o delicado ofício de ir remendando,
um a um, os retalhos que compõem o tecido do passado. Sem essa tarefa
primordial, o presente passa a não fazer sentido algum e o porto do futuro, tão
almejado por todos, deixa de existir, perdido em alguma região incerta e não
sabida. Portanto é preciso ir catando esses pequenos recortes e migalhas
deixadas desordenadamente por todos os cantos, selecionando-os e assim
estabelecer uma conexão racional entre eles.
Em nosso caso particular, esse é um trabalho que necessita ser feito com
o maior rigor e fidelidade possível, dada a tentação contínua, sobretudo de
nossas autoridades, em reescrever o passado, apagando os fatos e construindo
narrativas fictícias sobre os escombros deixados para trás.
O século XXI tem sido prolífico na geração de fatos históricos e
marcantes para o Brasil. Apenas à guisa de exemplo, quem se der ao trabalho de
ir juntando as declarações feitas aqui e ali por nossas autoridades, nos três
Poderes, principalmente nos últimos anos, verá que, por detrás das narrativas
oficiais, construídas com esforço e genialidade, se esconde um emaranhado de
enredos factuais, que parece ser mantido, trancado a sete chaves, bem longe do
conhecimento público.
Um trabalho de remendo dessas declarações feitas a esmo, pode nos dar
uma pista do porquê estamos onde estamos. Se os tempos atuais não se mostram
abertos à possibilidade de dizer o que precisa ser dito, isso se deve às novas
interpretações dadas à Constituição. Não que nossa Carta tenha sofrido
alterações. O que parece ter sido mudado são as interpretações dadas, agora, à
Carta de 88.