No
último domingo (25), enquanto centenas de milhares de pessoas se dirigiam até à
Avenida Paulista para a manifestação convocada pelo ex-presidente Jair
Bolsonaro em defesa do Estado Democrático de Direito, contra os sucessivos
abusos judiciais e os excessos do Supremo Tribunal Federal, a dezenas de
quilômetros dali, no aeroporto internacional de Guarulhos, um outro abuso
acontecia - um que viria a escancarar as marcas do autoritarismo judicial
brasileiro para o mundo.
O
jornalista português Sérgio Tavares desembarcou pela manhã no aeroporto, com
destino certo: ele cobriria a manifestação na Paulista para seu canal no
YouTube, que tem mais de 243 mil inscritos. O que começou como um dia qualquer
de trabalho terminaria como um pesadelo: na imigração, Tavares foi abordado por
agentes da Polícia Federal (PF). Os agentes solicitaram seu passaporte e
conduziram Tavares para uma delegacia em São Paulo. Tavares estava oficialmente
detido, mas não sabia o motivo. Os agentes da PF não lhe deram nenhuma
informação.
Tavares
foi interrogado por quatro horas. Os agentes da PF questionaram Tavares sobre
suas opiniões políticas e sua visão do Brasil. Tavares acreditava em fraude
eleitoral? O que ele tinha a dizer sobre as urnas eletrônicas? Tavares fez
críticas aos ministros Alexandre de Moraes e Flávio Dino? E por que Tavares
postou em suas redes sociais que o Brasil passava por uma “ditadura do
Judiciário”? Tavares era anti-vacinas? A linha de questionamento era absurda: o
que as opiniões de Tavares sobre política tinham a ver com sua situação
migratória? Para sorte de Tavares, ele conseguiu publicar vídeos sobre o que
estava acontecendo e em pouco tempo sua história tomou as redes sociais, que
viram o episódio com indignação.
A
PF liberou Tavares e, diante da revolta nas redes, soltou uma nota absurda e
que continha pelo menos duas mentiras. A PF disse que conduziu “procedimento
padrão” para averiguar se Tavares veio a trabalho ou a turismo, porque ele não
teria visto de trabalho, e que o indagou sobre “comentários que fez sobre a
democracia no Brasil, afirmando que o país vive uma ‘ditadura do Judiciário’,
além de outras afirmações na mesma linha, postadas em suas redes sociais”. A PF
finalizou dizendo que as mesmas medidas são adotadas por padrão na grande
maioria dos aeroportos internacionais.
A
PF liberou Tavares e, diante da revolta nas redes, soltou uma nota absurda e
que continha pelo menos duas mentiras
Esta
última parte é claramente uma mentira: desconheço qualquer democracia avançada
do mundo que, ao interpelar estrangeiros durante a imigração, faça perguntas
sobre suas opiniões políticas, muito menos se a pessoa for jornalista. Há
países que fazem isso, mas estes fazem parte do seleto clube das piores e mais
sanguinárias ditaduras do mundo: Rússia, Venezuela, Coreia do Norte, Irã.
Nestes países, se você der as respostas “erradas” para as autoridades sobre sua
opinião a respeito do regime, é possível que você não só perca seu visto, mas
também nunca mais seja visto - felizmente, ainda não chegamos ao ponto em que
Tavares foi “desparecido” no Brasil.
A
outra mentira é de que Tavares foi detido por conta de seu status migratório, a
fim de checar se viajava a turismo ou a trabalho. Admitir isso é dizer que a PF
não conhece a lei brasileira ou que a conhece, mas que então cometeu crime de
abuso de autoridade, já que cidadãos europeus não precisam de visto de trabalho
para fazer coberturas jornalísticas no Brasil por até 90 dias, desde que não
sejam remunerados por empresas brasileiras. Como a cobertura de Tavares era
para seu próprio canal do YouTube, ele estava completamente regular e a PF não
tinha justificativas para detê-lo.
Chama
atenção na nota, ainda, o fato de que a PF confessa ter questionado o
jornalista a respeito de suas opiniões políticas e comentários que fez sobre o
Brasil nas redes sociais. Qual o interesse da PF nesse tipo de comentário? A PF
não tem poder ou atribuição para fiscalizar o pensamento das pessoas. Ter
opiniões críticas sobre a democracia no Brasil não é um crime - ainda. Assim,
qual era o objetivo de a PF fazer perguntas nessa linha, a não ser intimidar o
jornalista? Se Tavares confirmasse tudo o que disse sobre o Brasil, a PF iria
prendê-lo? Por qual crime? Qual linha legal teria sido atravessada por Tavares
e qual seria a sua punição? Isso a PF não diz.
A
verdade é que o que aconteceu foi uma prisão de fato, sem situação de
flagrância nem ordem judicial, em um procedimento muito parecido com a chamada
“prisão para averiguação”, comum em regimes autoritários e que foi considerada
incompatível com nossa Constituição Federal, como explicou o jurista e advogado
André Marsiglia. Tavares foi preso sem que houvesse flagrância de qualquer
crime e sem que houvesse mandado de prisão em aberto contra ele. Não havia
sequer notícia de outros crimes pretéritos que não poderiam ensejar a prisão,
mas uma investigação. Sua prisão ilegal foi feita, aparentemente, com o único
objetivo de constrangê-lo e interrogá-lo sobre suas opiniões políticas. O caso
tem todas as características do abuso de autoridade.
A
Suprema Corte norte-americana há muito tempo examinou casos como o de Tavares e
considerou ilegal a detenção para interrogatório. É preciso lembrar que os
Estados Unidos são um país muito mais rigoroso com criminosos do que o Brasil e
mais protetivo das ações policiais. Lá, a prisão de alguém sem causa provável é
considerada uma violação da Quarta Emenda da Constituição americana, que proíbe
buscas e apreensões de pessoas e seus bens sem causa provável. A causa provável
é equivalente, aqui no Brasil, à existência de razoáveis indícios de crimes, o
que não existia no caso de Tavares.
Há
países que fazem isso, mas estes fazem parte do seleto clube das piores e mais
sanguinárias ditaduras do mundo: Rússia, Venezuela, Coreia do Norte, Irã
No
caso Dunaway v. New York, de 1979, por exemplo, aquela Corte considerou ilegal
a condução de um suspeito para interrogatório feita pela polícia de Nova York
sem que houvesse causa provável, ou seja, sem indícios razoáveis de que havia
praticado um crime. Uma questão abordada foi se essa detenção caracterizava uma
“prisão de fato”, ainda que não fosse uma “prisão de direito”, isto é, que não
fosse uma prisão legal ou autorizada pelo Direito. A Corte aplicou o “duck
test”, ou teste do pato: se algo parece com um pato, nada como um pato e grasna
como um pato, então provavelmente é um pato. Logo, aquela detenção era sim uma
prisão ilegal e, assim, igualmente ilegal foi a confissão.
O
caso de Sergio Tavares foi mais um que se soma a uma série de arbítrios
judiciais praticados pela Suprema Corte brasileira, mas o abuso aparentemente
não acabou aí. Ao sair do país, Tavares relatou nas redes ter sido submetido a
uma nova rodada de constrangimentos, com seu passaporte sendo apreendido mais
uma vez pela PF. Felizmente, os agentes devolveram o seu passaporte e ele já
retornou a Portugal, seu país de origem, onde abusos desse tipo são mais raros
e tratados com mais rigor do que aqui. Portugal é, afinal, uma democracia
plena, desenvolvida e avançada.
No
caso de Tavares, para o azar da PF, o abuso de domingo rodou o mundo, assim
como as imagens da manifestação. A tentativa de intimidação foi um tiro no pé.
Contudo, a repercussão e a indignação social não têm sido suficientes para
frear sucessivos abusos judiciais. A escalada da arbitrariedade chegou a um
tamanho absurdo que é hora de aplicarmos ao Brasil o teste do pato: ainda
vivemos numa democracia ou cada vez mais se fortalece uma ditadura do STF?
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