A essa altura, mesmo quem não é cristão ou católico
soube da paródia blasfema que manchou a cerimônia de abertura dos Jogos
Olímpicos de 2024, em Paris, na sexta-feira passada, realizada ao longo do Rio
Sena, e não em um estádio – uma ideia bastante interessante, mas que acabou não
muito bem executada. Durante a segunda metade do evento, no segmento
“Festivité”, surge uma mesa com drag queens e outros membros da comunidade
LGBT, posicionados de uma forma muito, mas muito, mas MUITO semelhante às mais
famosas representações artísticas da Última Ceia (o leitor haverá de achar na
internet imagens mais explícitas que a usada no começo desta coluna).
Não foi só isso, claro; boa parte dos segmentos
artísticos da cerimônia tiveram um quê de wokismo, da exaltação do “poliamor” à
escolha de duas abortistas para as dez estátuas do segmento “Sororité”,
enquanto figuras como Santa Joana d’Arc foram ignoradas na seleção (esperar
Santa Teresinha seria pedir demais, admito). Aliás, o proverbial extraterrestre
que pousasse em Paris na sexta-feira teria certeza absoluta de que a história
da França começou em 1789, já que o roteiro “apagou” oito séculos de França cristã
(ou mais de um milênio, se contarmos o antigo reino dos francos). Ainda houve
quem visse nas cabeças falantes das Marias Antonietas decepadas uma sátira à
biografia de São Dionísio, primeiro bispo de Paris e que, conta-se, depois de
ser decapitado, pegou a própria cabeça e caminhou por quilômetros pregando um
sermão antes de finalmente morrer. Sobre essa parte específica da cerimônia,
não tenho como tirar conclusões; prefiro me concentrar na paródia da Última
Ceia.
A reação foi imediata: o bispo Robert Barron criticou,
o kicker Harrison Butker criticou, até o Elon Musk (que se define como “cristão
cultural”) e o Randolfe Rodrigues criticaram! A Conferência dos Bispos da
França também criticou, mas infelizmente faltou a voz do arcebispo de Paris,
Laurent Ulrich; o máximo que a Arquidiocese de Paris fez foi republicar a nota
da conferência, o que eu acho pouco – um amigo que vive na capital francesa me
disse que foi a uma missa celebrada por um dos bispos auxiliares neste domingo
e não se ouviu nenhuma palavra sobre o episódio. Uma pena; a principal
autoridade católica da cidade que sedia os Jogos Olímpicos podia e devia ter se
envolvido.
Se a inspiração para a cena não era a Última Ceia,
como o diretor alega, será mesmo que ele imaginou que ninguém veria “Festivité”
como paródia de algo sagrado para bilhões de pessoas?
Antes de seguir adiante, não posso deixar de mencionar
a tentativa post hoc de amenizar a situação, com a menção nas mídias sociais a
um quadro do flamengo Jan van Bijlert chamado O festim dos deuses – que,
convenhamos, tem uma composição idêntica às Últimas Ceias renascentistas. Isso
de forma alguma alivia a barra dos criadores da cerimônia francesa, até porque
aparentemente o contexto histórico das disputas entre católicos e protestantes
no século 17 torna muito plausível a hipótese de que a intenção do calvinista
Van Bijlert, ao mudar a forma como esse tema clássico vinha sendo retratado na
pintura renascentista, era fazer... uma paródia da Última Ceia ou, mais
especificamente, uma sátira à doutrina católica da transubstanciação.
O diretor Thomas Jolly e a organização não mencionaram
Van Bijlert explicitamente; apenas negaram a intenção de parodiar a Última
Ceia, afirmando que se tratava de um festival pagão-dionisíaco, e fizeram
aquele pedido de desculpas mandrake, o clássico “pedimos desculpas a quem se
sentiu ofendido”, que equivale a um “se você não entendeu nada ou se é um
floquinho de neve, tá bom, desculpa aí, mas não fizemos nada de errado”. Já
Michaël Aloïsio, porta-voz do comitê organizador de Paris 2024, citado pelo Vatican
News, afirmou a uma agência francesa “assumimos que ultrapassamos a linha” – se
ele assumiu com arrependimento ou com orgulho não fica claro, mas imagino que,
se fosse com orgulho, não precisariam ter recorrido a Van Bijlert. Quem não
combinou com os russos foi a DJ Barbara Butch, que era a figura central da cena
e, no Instagram, fez publicações (depois apagadas) com afirmações do tipo “Yes!
Yes! The new gay testament!” e se referiu a si mesma como “Jesus Olímpico”.
Sejamos, no entanto, sumamente benevolentes e
admitamos por um minutinho (não mais que isso) que o idealizador do segmento
realmente quis se basear num quadro pouco conhecido, que por acaso é muito
semelhante a outras obras mundialmente célebres: será mesmo que ele imaginou
que ninguém veria a cena da cerimônia de abertura como paródia de algo sagrado
para bilhões de pessoas?
Cenas controversas de cerimônias olímpicas podem ser
cortadas aos 45 do segundo tempo: Cerimônias de abertura e encerramento de
Jogos Olímpicos são algo exaustivamente ensaiado. É verdade que, desde o
surgimento dos smartphones, os organizadores “escondem” muito mais coisas para
evitar que detalhes importantes vazem antes da hora. Em 2006, fui voluntário
nos Jogos Olímpicos de Inverno de Turim e assisti ao ensaio final; proibiram
câmeras no estádio e praticamente tudo estava no ensaio, tirando o nome de quem
acenderia a pira olímpica e a forma como isso seria feito, e a presença de Yoko
Ono, Peter Gabriel e Luciano Pavarotti. Em 2016, voltei a ser voluntário no Rio
e assisti a um ensaio realizado poucos dias antes da abertura; não havia como
tirar os celulares de todo mundo, então pediam apenas que não estragássemos a
surpresa para todos os demais. Mesmo assim, muito mais coisa ficou oculta nesse
ensaio em comparação com o de 2006.
Mas uma coisa eu vi, ninguém precisou me contar:
estava previsto que Gisele Bündchen, no papel da Garota de Ipanema, desfilasse
pelo palco e fosse assaltada por um piv... adolescente em conflito com a lei,
que seria perseguido pela polícia, mas no fim seria defendido pela própria
modelo, e tudo acabaria bem. A cena teve repercussão tão negativa que foi
excluída; no fim, como o mundo todo viu, Gisele simplesmente atravessou o
Maracanã ao som do clássico de Tom Jobim e Vinicius de Moraes.
A moral da história é que trechos das cerimônias
olímpicas podem ser refeitos quase em cima da hora do evento. No caso de Paris,
algumas partes foram ensaiadas no local onde ocorreriam ao longo do Sena, e
outras foram ensaiadas em locais fechados, longe do público; não sei onde
exatamente foi feito o ensaio de “Festivité”. Mas, a não ser que a cena
específica tivesse sido mantida em segredo total, conhecida apenas pelos que
fariam parte dela, eu sinceramente acho impossível que um terceiro, ao ver
aquilo, não tivesse no mínimo se perguntado “mas isso não parece demais com a
Última Ceia?” Mesmo que esse terceiro fosse um não cristão, que não se sentisse
ofendido (um cristão que soubesse do que estava por vir teria colocado a boca
no trombone antes da sexta-feira, assim espero), é natural que a pergunta
seguinte fosse “isso não vai dar problema?” Se fosse alguém vinculado à
organização, possivelmente levaria essa preocupação aos diretores, que ou
perceberiam o potencial de controvérsia e mudariam a cena, ou ao menos já se
preveniriam com algum tipo de disclaimer, por exemplo no material entregue à
imprensa internacional para a transmissão da cerimônia, algo como “vejam, isso
aqui pode parecer, mas não é uma paródia da Última Ceia”. Nada disso foi feito,
e a demora para tentarem consertar a situação me faz, sim, pensar que foi tudo
uma agressão gratuita e planejada, mas que pegou tão, tão mal que tiveram de
sair correndo atrás de uma justificativa para contenção de danos.
O que podemos fazer a respeito? Como lembrou o
bispo Barron, dar a outra face não significa ficar quieto. O cristão tem todo o
direito de manifestar sua indignação e pedir que sua fé seja respeitada. Aqui
eu dou algumas sugestões a respeito do que se pode fazer.
Rezar. Em primeiro lugar, rezar em desagravo pela
ofensa cometida. Em segundo lugar, rezar pelos que idealizaram isso, pelos que
participaram disso, pelos que aplaudiram isso, para que se arrependam e se
convertam.
Os atletas cristãos que se ofenderam com a cerimônia
de abertura precisam reagir de forma inteligente e aproveitar as oportunidades
para manifestar sua fé. E eles estão fazendo isso
Boicotar. Considero o boicote uma forma de protesto
totalmente válida, e cada um decide livremente se irá usá-la, e como irá
usá-la. Eu, particularmente, não deixaria de assistir aos jogos, até porque os
atletas não têm nada a ver com isso e porque expor as pessoas (especialmente as
crianças) ao esporte olímpico representa um incentivo que não existe em outras
épocas. Mas, se alguém resolve não assistir, ou não comprar produtos oficiais
(essa é uma forma de atingir mais diretamente a organização), está no seu
direito e não sou eu que irei criticar.
Evitar a tentação do post hoc ergo proter hoc: Essa é
a falácia que cria relação de causa e efeito entre fatos que se sucedem no
tempo: “se A ocorre depois de B, então é porque B foi a causa de A”. Circulou
uma história (não confirmada) sobre um grande blecaute em Paris no sábado, e aí
já vem uma turma dizendo que foi resposta divina. Até entendo a boa vontade de
quem faz isso, mas nem se amanhã soubéssemos que Jolly foi diagnosticado com um
câncer superagressivo eu pensaria que tem a mão de Deus aí. Não é assim que Ele
trabalha ordinariamente. Se fosse assim, a essa altura todos os membros do
Porta dos Fundos já teriam adoecido gravemente, ou um vírus teria destruído
todos os computadores deles, sei lá eu. E pessoas boas não teriam doenças
fatais.
Divulgar as manifestações de fé dos atletas. Os
atletas cristãos que se ofenderam com a cerimônia de abertura precisam reagir
de forma inteligente e aproveitar as oportunidades para manifestar sua fé. E
eles estão fazendo isso, embora eu não saiba dizer se é algo que já fariam
naturalmente, ou se os fatos de sexta-feira deram um empurrãozinho. Nem sempre
dá certo: o surfista João Chianca teve de retirar o Cristo Redentor de suas
pranchas. Parece que o melhor é a atitude de “guerrilha”, aquelas manifestações
imprevistas que a organização não tem como detectar antecipadamente: entre os
brasileiros já tivemos a linguagem de sinais da Rayssa Leal e a sensacional
entrevista da judoca Larissa Pimenta após vencer sua luta pela medalha de
bronze. Ou, então, o segredo é fazer algo que seja impossível coibir ou
ignorar, como a enorme tatuagem de cruz do nadador britânico Adam Peaty bem no
meio do seu abdômen. O nosso papel, aqui, é reconhecer e divulgar essas
manifestações.
Falar em diversidade, inclusão, respeito, tolerância
não passa de hipocrisia quando alguém decide que os cristãos não são dignos de
nada disso. Continuo tão fã dos Jogos Olímpicos hoje como era antes de
sexta-feira, mas isso não me impede de afirmar que a cerimônia de abertura, por
esse ponto de vista, foi um desastre. O que deveria ser uma celebração da
cultura e da história francesas virou uma pequena coleção de momentos
memoráveis embrulhados com um punhado de propaganda woke.
Para desanuviar um pouco, uma história interessante.
Atualmente, o COI só aceita novos membros que sejam nações independentes, e
existem apenas dois países nessa situação que não têm comitê olímpico
reconhecido: Niue, na Oceania, e o Vaticano. Acontece que o Vaticano tem, sim,
uma equipe esportiva, a Athletica Vaticana, que participa de competições
menores em algumas poucas modalidades. Eu contei essa história na coluna Papo
Olímpico, que mantive no Um Dois Esportes entre 2021 e 2022. Quem sabe um dia vejamos
uma delegação do Vaticano disputando os Jogos Olímpicos com todas as demais
nações; seria um belo testemunho.