A recente denúncia apresentada pela
Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, de
272 páginas, descreve uma organização criminosa formada por 34 pessoas e que
tinha como objetivo manter Bolsonaro no poder - ou retomar o poder - a qualquer
custo desde, pelo menos, 2021. A denúncia diz que desde junho de 2021 a
organização criminosa praticava atos dolosos em busca da “abolição do Estado
Democrático de Direito” e do “governo legitimamente eleito”, referindo-se ao
novo governo Lula. Como isso seria possível se, em 2021, o governo
legitimamente eleito era o de Bolsonaro, que ainda era presidente? Esse é
apenas um dos muitos problemas da denúncia. Destacarei cinco.
Antes disso, é importante dizer que a
democracia se relaciona intimamente com a dignidade da pessoa humana, com seu
grande valor imanente. Só ela garante a igualdade de todos - um homem, um voto
- e a liberdade para o povo decidir seu destino. Mudanças de governo devem
acontecer pelos canais democráticos, como as eleições ou o impeachment. Golpes
de Estado, intervenções militares, ditaduras e quaisquer planos de homicídio
devem ser repudiados de maneira enfática por todos, mas especialmente por quem
se considera de direita, patriota, conservador e cristão. Eventuais crimes
devem ser punidos, mas sempre de acordo com o que diz a lei, e não de acordo
com o que os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) gostariam que a lei
fosse. E a lei penal brasileira nesse caso não pune a cogitação, os pensamentos
e planos não executados, como veremos a seguir.
1. A base da denúncia: a delação
premiada de Mauro Cid: O primeiro problema fundamental da denúncia é sua total
dependência da delação premiada do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro
Cid. Essa delação foi feita após Cid permanecer preso ilegalmente, sem
denúncia, por mais de 4 meses, o que coloca em xeque sua voluntariedade,
requisito legal de validade da delação. Não bastasse isso, a delação foi
inicialmente rejeitada pela PGR por ser considerada frágil e sem provas
suficientes - apenas 3 dias depois da PGR rejeitá-la, Moraes a homologou.
Depois disso, Cid foi pego em áudios
afirmando que a Polícia Federal (PF) colocou palavras em sua boca e que ela já
tinha a “narrativa pronta”, o que o fez ser preso novamente. Depois de Cid ser
ameaçado por Moraes com uma nova prisão, rescisão do acordo e punições a seus
familiares, ele mudou a versão de seus depoimentos. Em qual Mauro Cid
acreditar: naquele espontâneo, dos áudios, ou naquele que agiu debaixo de
ameaças à sua família? Se a lei exige provas que reforcem a palavra do
colaborador, neste caso são necessárias provas independentes. Além disso, a lei
é clara ao afirmar que a palavra do colaborador não pode ser a única base para
uma denúncia.
A PGR, no entanto, falha em apresentar
essas provas adicionais, fazendo interpretações forçadas de conversas e
eventos: exemplo maior disso é a imputação de autoria da minuta do golpe a
Filipe Martins com base apenas na palavra de Cid. Não há outras provas que
corroborem isso.
Da mesma forma, uma base central da
denúncia é a teoria de que o discurso contra as urnas era insincero e tinha por
propósito manipular o povo, criando um ambiente favorável a um golpe. A
denúncia usa vários discursos, lives e postagens nesse sentido como “prova” da
trama golpista. Contudo, as provas indicam justamente o contrário: Bolsonaro
critica as urnas desde pelo menos 2018. Além disso, dentre as anotações de
Anderson Torres apreendidas, que teriam sido apresentadas por ele a Bolsonaro,
constava: “por tudo que tenho pesquisado, mantenho total certeza de que houve
fraude nas eleições de 2018, com vitória do Sr. no primeiro turno”. Se o
discurso e os questionamentos eram sinceros, ainda que pudessem estar
equivocados, cai grande parte da “prova” da trama golpista.
2. A tentativa de golpe de Estado nunca
foi executada: A denúncia afirma que Bolsonaro e seu grupo estavam organizando
um golpe de Estado desde 2021 e que o 8 de janeiro de 2023 teria sido o ápice
dessa trama. No entanto, o próprio documento da PGR admite em várias passagens
que o golpe nunca chegou a ser executado, pois as Forças Armadas não aderiram
ao suposto plano. Os crimes de abolição violenta do Estado Democrático de
Direito (art. 359-L do Código Penal) e golpe de Estado (art. 359-M do Código
Penal) exigem, para sua configuração, que sejam praticados “por meio de
violência ou grave ameaça”.
Se não há o emprego nem de violência
nem de grave ameaça, todas as etapas anteriores apresentadas pela PGR, como
reuniões para discutir o plano de ação, minutas de golpe, planos escritos, mensagens
no WhatsApp, campanhas para desacreditar o processo eleitoral e bravatas
constituem fatos preparatórios impuníveis que não possuem relevância penal.
Além disso, há diversas provas de que houve desistência voluntária dos
envolvidos em diversos momentos, ao perceberem que Bolsonaro não agiria e que
as Forças Armadas não adeririam ao golpe.
A “desistência voluntária” é uma regra
da lei penal que impede a punição de uma pessoa quando ela voluntariamente
desiste de executar um plano criminoso. O motivo da desistência aqui é
irrelevante: pode ter sido o receio de punição ou a falta de adesão de
terceiros ao plano. O que importa ao processo penal é que os denunciados não
prosseguiram com o plano golpista para ações de violência ou de grave ameaça.
3. A PGR não conseguiu comprovar o
vínculo da trama golpista com o 8 de janeiro: Esse é um dos maiores
problemas da denúncia e um dos que mais revela as graves fragilidades da peça.
A denúncia é incapaz de demonstrar uma conexão concreta entre Bolsonaro e os atos
de vandalismo ocorridos em 8 de janeiro. Não há mensagens, áudios ou qualquer
prova de que o ex-presidente tenha orientado manifestantes a invadir a Praça
dos Três Poderes. O próprio Diretor-Geral da Polícia Federal admitiu
recentemente que não houve um financiamento centralizado dos atos, o que
confirma que as ações foram orgânicas e descentralizadas, sem um planejamento
central.
Aliás, Bolsonaro sequer estava no
Brasil na época da manifestação. Não é crível que o ator central do golpe de
Estado observasse seu próprio golpe do exterior, silente. Em que golpe no mundo
algo parecido aconteceu? Além da falta de vinculação entre o grupo de Bolsonaro
e o 8 de janeiro, há um segundo problema aqui: os vandalismos do 8 de janeiro
não foram, definitivamente, uma tentativa de golpe. Os meios empregados, sem
armas de fogo ou poderio militar, eram absolutamente ineficazes para produzir
um golpe e a lei penal chama esse tipo de situação de “crime impossível”, que
não está sujeito a punição. Na pior das hipóteses, muitos manifestantes agiram
para incitar as Forças Armadas para que estas dessem um golpe, o que
caracterizaria o delito de incitação ao crime, com penas muito mais baixas.
Como a PGR não conseguiu comprovar que
os planos golpistas saíram do papel e envolveram violência e grave ameaça antes
do 8 de janeiro, a PGR precisava fazer duas coisas para ter uma denúncia
viável: vincular as manifestações violentas com o grupo de Bolsonaro e
transformá-las em uma tentativa de golpe de Estado. Assim, era um passo
necessário para condenar Bolsonaro o enquadramento dos réus do 8 de janeiro por
golpe de Estado, ainda que isso importasse em aplicar penas injustas, que
chegaram a 17 anos de prisão.
4. Contradição sobre os diferentes
planos de golpe: A PGR sustenta que Bolsonaro liderava três planos de
golpe diferentes: o da minuta do golpe, que previa a decretação do Estado de
Defesa e a prisão de Alexandre de Moraes, o “Punhal Verde e Amarelo”, que
previa a prisão e assasinato de Alexandre de Moraes e o envenenamento de Lula e
Alckmin, e um terceiro, o “Copa 2022”, que buscava gerar caos social para
justificar uma intervenção militar. O problema é que esses planos são
incompatíveis entre si, têm métodos diferentes e não poderiam ser liderados
simultaneamente por Bolsonaro.
Como Bolsonaro poderia estar liderando
e executando três planos diferentes ao mesmo tempo, com objetivos tão
distintos? A denúncia não explica isso. Ela também omite o fato relevante de
que Bolsonaro, como revelou o próprio ministro da defesa de Lula, José Múcio,
ajudou a transmitir o comando das Forças Armadas ao governo de transição de
Lula, o que demonstra de forma inegável que não houve execução do plano
golpista. Qual presidente que pretende dar um golpe de Estado transfere a seu
principal adversário político o comando das Forças Armadas, justamente quem
poderia efetuar o golpe?
5. Criminalização da liberdade de
expressão e do direito de crítica: Por fim, a denúncia tenta transformar
críticas ao sistema eleitoral e ao governo em prova de intenção golpista. Porém,
criticar o TSE, as urnas e o sistema eleitoral brasileiro não é crime nem
ilegal segundo as leis brasileiras. Também não é crime espalhar fake news ou
desinformação, que sequer são conceitos que existem na lei brasileira. As
instituições públicas devem estar sujeitas a questionamentos e ninguém é
obrigado a acreditar ou desacreditar em uma coisa ou outra. Isso deriva do
princípio constitucional da legalidade, que reconhece o espaço de liberdade dos
cidadãos fora daquilo que a lei proíbe.
A PGR constroi uma narrativa
implausível segundo a qual qualquer dúvida sobre a lisura do processo eleitoral
é automaticamente um indício de conspiração criminosa. Além disso, a PGR não
exclui a hipótese alternativa: a de que as pessoas envolvidas acreditavam
sinceramente em uma possível fraude por mais que existam evidências em
contrário. Se o grupo de Bolsonaro duvidava do sistema eleitoral, uma pesquisa
do PoderData de dezembro de 2022 apontou que eles não estavam sozinhos: 36% dos
brasileiros achavam que a contagem de votos não era segura.
Se o grupo de Bolsonaro, como 36% dos
brasileiros, tinha dúvidas genuínas sobre o sistema eleitoral, ainda que
estivessem errados nisso, isso derruba grande parte da denúncia que se baseia
na teoria de que a crítica às urnas era feita para sustentar um golpe de
Estado. Essa criminalização do pensamento e do discurso político, sem provas da
má-fé ou insinceridade do discurso, abre um precedente autoritário, perigoso e
inaceitável para a democracia, já que a liberdade de expressão existe
justamente para proteger o discurso desagradável ou desaprovado socialmente.
A distopia suprema: Há muitos
outros problemas desse caso criminal contra Bolsonaro que já apontei em outro
artigo aqui na Gazeta, como o evidente impedimento do juiz-vítima Alexandre de
Moraes. Os problemas da denúncia gritam. Vemos uma interpretação “criativa” dos
fatos e uma aplicação completamente heterodoxa da lei penal. As fragilidades
jurídicas da denúncia contra Bolsonaro expõem uma motivação política, que nem
mesmo o STF esconde.
De fato, ministros da corte se fizeram
claros por porta-vozes da imprensa: pretendem condenar Bolsonaro até o fim do
ano para “evitar contaminação do ano eleitoral”, isto é, para evitar que
Bolsonaro possa concorrer nas eleições de 2026, mesmo superando Lula e todos os
demais candidatos em intenção de votos, como revelou um levantamento do Paraná
Pesquisas publicado no mesmo dia em que a denúncia foi oferecida.
O cenário é de um jogo de cartas
marcadas e de um julgamento “fake”, em que os ministros do STF já se decidiram
pela condenação e até seu prazo. Não importa o que as defesas irão alegar ou
que provas vão apresentar ao longo do processo. É algo digno das piores
ditaduras já vistas na face da terra, que julgavam seus adversários políticos e
dissidentes com base em uma conta de chegada e em conclusões já tomadas de
antemão, contra as quais ninguém poderia se defender ou comprovar
inocência.
Nem mesmo Kafka ou Orwell conseguiriam
escrever um enredo tão opressor, autoritário e distópico como o que os
ministros do Supremo escrevem na história do Brasil atual. E a frase final do
roteiro já foi escrita: “derrotamos o bolsonarismo”.