"Uma mãe que largou os filhos para
ajudar no terrorismo num domingo à tarde, num golpe de Estado", escreveu a
usuária @recatadaedolar no X, em resposta a uma postagem do deputado estadual
Bruno Engler, de Minas Gerais. Lorena, como também é conhecida a usuária,
estava reagindo a um vídeo em que os filhos pequenos de Debora Rodrigues, Rafa
e Caio, imploram por ajuda para tirar a mãe da cadeia. “Ainda estão aqui –
órfãos de pais vivos. A mãe desses garotos está presa há quase dois anos porque
riscou uma estátua com BATOM. Brasil, 2025”, escreveu Bruno Engler.
Debora Rodrigues, é claro, tornou-se
nacionalmente famosa por ter cometido a proeza histórica de tentar um golpe de
Estado armada apenas com um batom vermelho e palavras retiradas diretamente da
boca do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luís Roberto
Barroso: “Perdeu, mané”. Por conta desse crime "imperdoável", Debora
perde alguns dos melhores anos da vida de seus filhos e é submetida a uma
injustiça que nem mesmo criminosos perigosos, acusados de delitos realmente
graves, enfrentam no Brasil.
Mas voltemos ao que escreveu Lorena,
cuja publicação viralizou no X, alcançando mais de 1,8 milhão de visualizações
e 127 mil curtidas. Seu post, além de pouco misericordioso, demonstra pouca
inteligência. As camadas de ignorância, crueldade e hipocrisia na publicação
são evidentes, assim como nos comentários de quem concorda com ela: "Sem
anistia!", “Bem feito”, "Se estivesse em casa cuidando dos filhos,
não estaria presa, simples", “E eu com isso?”, "Espero que ela
apodreça lá".
Lendo esse tipo de comentário, é
impossível não traçar um paralelo entre a situação de Debora Rodrigues e o
filme Ainda Estou Aqui, do diretor Walter Salles, que conquistou o primeiro
Oscar do Brasil no último domingo e catapultou Fernanda Torres ao estrelato
hollywoodiano por sua interpretação da advogada Eunice Paiva. Eunice foi esposa
do ex-deputado Rubens Paiva, torturado e assassinado pela ditadura militar. Ela
viveu com a dor de não saber o paradeiro do marido por mais de 20 anos, até que
o Estado brasileiro foi finalmente obrigado a declarar sua morte nos anos 90.
“É impossível não traçar um paralelo
entre a situação de Debora Rodrigues e o filme Ainda Estou Aqui”
No filme, Rubens Paiva é levado de casa
por agentes da ditadura, que investigam suas ligações com subversivos. Apenas
no desfecho, Eunice descobre, por meio de um amigo da família, que Rubens
ajudava guerrilheiros e militantes de esquerda contrários ao regime. Ele nunca
abandonou a política. Desde o dia em que foi levado para "interrogatório",
Eunice nunca mais viu o marido, assim como os filhos de Debora nunca mais a
viram desde que a Polícia Federal (PF) de Alexandre de Moraes a levou de casa
há mais de dois anos.
Será que os comentários de Lorena não
poderiam ser aplicados, palavra por palavra, a Rubens e Eunice Paiva? Diante de
tamanha crueldade contra Debora, a primeira coisa que me ocorre é que pessoas
como Lorena e seus amigos progressistas diriam exatamente as mesmas coisas nos
anos 70 sobre as vítimas da ditadura militar: "Um pai que largou os filhos
para ajudar terroristas de esquerda num domingo à tarde, num golpe de
Estado". E seus colegas reforçariam: "Se estivesse em casa cuidando
dos filhos, não teria sido torturado, simples!", "Quem mandou se
meter com guerrilheiros e terroristas de esquerda? Tomara que apodreça onde
está".
Mas Lorena, em tese, é contra
ditaduras, tortura, sequestros de pais e mães de família, desaparecimentos
forçados e assassinatos políticos. Será mesmo? Quando vejo comentários como o
dela, a conclusão inevitável é que Lorena não é, de fato, contra nada disso –
ela é apenas contra ditaduras de direita, que persigam e matem progressistas e
pessoas de esquerda como ela. Se a ditadura for de esquerda ou comandada por um
ministro supremo de sua preferência, aí tudo bem. Nesse caso, a culpa de estar
presa é toda de Debora, e seus filhos que se virem, assim como os filhos de
Rubens Paiva cresceram sem o pai. Mais do que isso: qualquer crueldade e
indignidade contra Debora e sua família está justificada.
E isso sem sequer entrarmos nos
aspectos jurídicos do caso. Lorena afirma que Debora ajudou no
"terrorismo", mas surge a pergunta básica: Debora foi formalmente
acusada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) pelo crime de terrorismo?
Será que Lorena sabe? A resposta é não. Porque a lei brasileira sobre
terrorismo não prevê a possibilidade de atos terroristas quando a motivação é
política. No contexto do 8 de janeiro, o termo "terrorismo" só existe
na boca do jornalismo militante da GloboNews e dos desavisados da esquerda.
E quanto ao "golpe de
Estado"? Existe, na história da humanidade, algum golpe bem-sucedido
realizado apenas com um batom? Uma cabeleireira comum, evangélica e mãe de dois
filhos teria competência, capacidade e meios para derrubar um governo de um país
continental como o Brasil e instaurar um novo governo provisório? Seria Debora
mais eficiente, com seu singelo batom vermelho, do que generais, almirantes e
brigadeiros das Forças Armadas e suas tropas? E quem seriam seus
"aliados"? Os cinco moradores de rua e o vendedor ambulante que
ficaram presos por meses, alguns mais de ano, porque se aproximaram das
manifestações em busca de comida ou para vender seus produtos?
“Se a ditadura for de esquerda ou
comandada por um ministro supremo de sua preferência, aí tudo bem”
Será que pessoas de esquerda como
Lorena e seus companheiros de desumanidade nos comentários têm alguma noção do
quão ridículos parecem ao chamar Debora de golpista e terrorista? Será que
percebem como são crueis ao defender que ela tenha seus direitos violados e
sofra a pior das injustiças apenas por discordarem dela politicamente? Será que
entendem sua própria hipocrisia ao celebrarem a vitória de Ainda Estou Aqui no
Oscar, enquanto defendem que o mesmo tratamento ditatorial retratado no filme
seja aplicado a outra pessoa nos dias de hoje?
Injustiça é injustiça, seja contra
Rubens Paiva, seja contra Debora Rodrigues. A esquerda luta tanto contra a
discriminação racial, mas realiza discriminação política do pior tipo:
desumaniza e naturaliza os abusos contra seus adversários. Denunciam a ditadura
militar do passado, mas apoiam a ditadura do Judiciário do presente. Passam
pano para os criminosos de rua em nome de uma suposta “compaixão”, mas endossam
a crueldade contra bolsonaristas julgados em lote e sem provas individualizadas
de ilícitos. Talvez, daqui a 50 anos, quando a história de Debora e de seus
filhos também for contada em um filme concorrente ao Oscar, eles finalmente
compreendam. E, ao assistirem, percebam que a ditadura retratada na tela não é
outra senão a deles mesmos.