O legado de um Papa, assim como de
qualquer estadista, sempre comportará múltiplas visões e interpretações. A
chamada “verdade histórica” tem suas nuances - e é bom que seja assim.
Ninguém haverá de negar a importância de
Winston Churchill na derrota do nazismo. Já o legado de Gorbachev, por exemplo
- figura central na derrubada da chamada Cortina de Ferro - contém um pouco
mais de controvérsia.
Há os que o veem como agente da
história. E há os que enxergam nele mais uma peça usada para tentar salvar,
pelo menos em parte, a propaganda socialista - diante da derrocada
inevitável.
Com o legado do Papa Francisco não será
diferente. É possível que se consolide algumas correntes de pensamento que, já
há algum tempo, retratam o ciclo que agora se encerra como a busca de um
caminho mais “progressista” para o Vaticano.
Em geral, “progressista” quer dizer
libertadora de tabus ou algo no gênero - sendo obrigatório ressalvar que esse
tipo de conceito é muito pouco específico, quando não deliberadamente
vago.
Mas não há dúvida de que muitos
historiadores se referirão a Francisco como o “papa progressista”, aí contida
uma ideia de libertador e modernizador.
Outros provavelmente verão nessa
conduta um certo afastamento do que deve ser o papel do líder máximo da Igreja
Católica. Temos visto nos últimos 12 anos analistas considerando o Papa
excessivamente “ideológico”. E aí talvez se inicie um ponto da controvérsia que
merece um melhor esclarecimento.
Não há problema no fato de o Papa assumir
um papel político. A rigor, ele nem precisa “assumir” esse papel: o posto já
traz em si uma grande expressão política - e um dos símbolos mais fortes disso
é o legado de João Paulo II na superação dos regimes totalitários de inspiração
comunista. Sem proselitismo ou militância, ele foi sem dúvida um agente
histórico na reconquista de liberdades perdidas. Pode-se dizer o mesmo do Papa
Francisco?
Uns dirão que sim, outros dirão que não
- e assim prosseguirá a roda da história, que também é feita de liberdade
intelectual. A conduta do Papa Francisco sempre teve inegavelmente a marca do
discurso libertador.
“O desafio que se coloca é aferir a
efetividade da mensagem - sabendo-se que a retórica pode ser mais ou menos
potente quanto ao significado real alcançado”
O século 21 tem sido um período
delicado nesse aspecto, por uma certa banalização do discurso humanitário.
Muitas forças políticas, e mesmo não intrinsecamente políticas - como nos meios
jornalístico, artístico e empresarial - passaram a adotar mensagens de apelo
humanitário que, frequentemente, se mostraram só truque propagandístico. A
disseminação desse expediente deu uma confundida na opinião pública, pode-se
dizer.
E aí, em relação ao Brasil, por
exemplo, a mensagem política do Papa Francisco pareceu seguir uma orientação
não muito segura. Partidos e mesmo movimentos de retórica “progressista” - como
PT e MST - passaram aparentemente a influenciar o juízo do pontífice sobre a
conjuntura do país. A ponto de manifestar preocupação com o impeachment de
Dilma Rousseff - cancelando em seguida uma viagem ao Brasil. E recebendo Lula
assim que ele saiu da prisão - com a anulação da sua condenação por corrupção -
para uma reunião sobre a fome no mundo.
A interpretação do significado do
legado do Papa Francisco começará com a sucessão dele - onde o Vaticano deverá
emitir ao mundo os primeiros sinais do juízo feito sobre os últimos 12 anos.
Com certeza será um elemento valioso para a compreensão do caminho que a
humanidade irá seguir após esse enigmático primeiro quarto de século 21.