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Da crisálida à borboleta

Da crisálida à borboleta

Algum dia lá adiante, em alguma sala fria de arquivo ou em uma aula de história contemporânea, uma data de janeiro será revisitada com a distância que só o tempo permite. Aquilo que hoje mobiliza manchetes e entusiasmos será observado com olhos mais contidos, mais analíticos, menos apaixonados. Porque a memória, com o correr dos anos, tem o curioso hábito de revisar tudo aquilo que o presente consagrou como verdade. O que se celebra como firmeza, talvez soe como encenação. O que se apresenta como justiça, poderá um dia ser lido como teatro. E o que hoje é apontado como “exemplo”, amanhã pode surgir como advertência. O tempo, senhor de todas as versões, costuma expor aquilo que a narrativa cobre com o véu do interesse. O que parecia claro, nítido, consensual, com o tempo, revela suas sombras e zonas de ambiguidade.

A História — essa observadora obstinada — é feita  de desconstruções. E, talvez, ao olhar para trás, veremos que aquilo que parecia um julgamento emblemático foi, em muitos momentos, também um exercício estético de poder. Um tribunal, que antes falava por acórdãos, começou a falar por câmeras e holofotes. O silêncio solene deu lugar à cadência de frases planejadas. O que era para ser técnica jurídica virou gesto midiático. E assim, sob os refletores da audiência pública, a toga trocou o peso do recato pelo brilho do palco.

Nesse novo cenário, não há espaço para recuos. O julgador virou personagem. O argumento virou roteiro. E o debate jurídico se converteu em dramaturgia institucional. A presença constante de certas figuras togadas nas telas, nas transmissões, nas redes sociais, produziu uma nova simbologia. O juiz, que antes se resguardava, agora se apresenta. O tribunal que se dizia árbitro, agora atua como protagonista. E, no espaço que deveria ser de escuta técnica, passou a ecoar slogans cuidadosamente planejados para viralizar. Há, claro, quem celebre essa transparência. Mas é preciso perguntar: até que ponto a exposição é virtude, e em que momento ela se torna vaidade? Onde termina a pedagogia democrática e onde começa a busca por influência simbólica?

A resposta talvez esteja em detalhes quase imperceptíveis — na escolha das palavras, na entonação dramática, na pausa calculada, no olhar treinado para a lente. E o que era para ser exceção tornou-se método. Assim, o tribunal, que deveria ser discreto, passou a ocupar um espaço onipresente. E, de tanto estar em cena, corre o risco de deixar de ser referência para se tornar apenas mais uma voz no ruído geral. O recado se dilui. A autoridade se desgasta. A neutralidade, essa base silenciosa do julgador, começa a ser confundida com alinhamento. Afinal, quando os intérpretes da Constituição parecem afinados demais com as vontades do dia, a própria Carta passa a ser lida como espelho de ocasião. O princípio cede lugar à conveniência. A regra vira argumento para decisões que extrapolam o texto. E a interpretação, essa ferramenta legítima, transforma-se num bisturi que corta a realidade conforme o modelo desejado. A hermenêutica jurídica — antes usada para esclarecer zonas cinzentas — passa a servir como tinta para pintar cenários de ideias políticas. Liberdades, garantias, competências, tudo pode ser redimensionado quando o juiz assume o lugar do legislador, do governante, do intérprete moral da sociedade. Em alguns momentos, o julgamento parecia menos um rito e mais uma cerimônia.

Um evento cuidadosamente embalado para consumo midiático. Os votos deixaram de convencer pelo argumento e passaram a seduzir pela forma. A dramaticidade substituiu a sobriedade. O tom categórico tomou o lugar da dúvida técnica. E a liturgia deu espaço à coreografia. Resta saber como isso será lembrado. Como se narrará essa fase? O que ficará nos livros? O que será dito nos cursos de direito? Como os jovens juristas interpretarão essas decisões daqui a duas décadas? Talvez se diga que era um tempo de exceção. Talvez se tente justificar os excessos com a gravidade dos fatos. Mas talvez também surja a consciência de que a resposta institucional, mesmo diante da crise, precisa manter seus próprios limites. Porque quando a toga se torna símbolo de poder e não de contenção, a justiça corre o risco de se parecer com aquilo que deveria combater: a manipulação.

Em regimes democráticos, o risco maior nem sempre é o autoritarismo escancarado, mas o autoritarismo justificado pela retórica jurídica. Por isso é que tantos juristas antigos alertavam: interpretar a Constituição é necessário, mas perigoso. Porque entre o verbo e a vontade, existe uma linha tênue. Paul Cliter Kuiper já dizia: “A Constituição não se interpreta, se cumpre.” Em tempos normais, essa frase pareceria simplista. Mas, em tempos performáticos, ela se torna um grito. Afinal, quando todos interpretam segundo suas verdades, a lei vira disputa de narrativas. E o que deveria unir passa a dividir. A corte, que deveria garantir o equilíbrio, move-se. Por se mover demais, deixa de ser referência para virar vetor. E assim seguimos, num tempo em que a segurança jurídica é constantemente atravessada por vontades, simbolismos, lealdades circunstanciais e construções retóricas.

A busca incessante é pela confiança de que, mesmo quando não concordamos com as decisões, sabemos que elas vêm do Direito — e não de uma agenda. Essa confiança, quando abalada, demora décadas para ser restaurada. E, talvez, lá na frente, seja disso que mais sentiremos falta.

A frase que foi pronunciada: “Não há nada em uma lagarta que diga que ela se tornará uma borboleta.” (R. Buckminster Fulle)


Circe Cunha e Mamfil – Coluna “Visto, lido e ouvido” - Ari Cunha -Charge: Nani Humor - R. Buckminster Fuller. Fotografia: Arquivos da CSU / Everett - Correio Braziliense


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