Em 2013, um jogador da seleção inglesa de rúgbi, na
ocasião de uma foto oficial, fez o sinal de chifre na cabeça do então
primeiro-ministro David Cameron. Uma bravata estúpida e mal-educada, mas ao
mesmo tempo um sinal de liberdade. Ele se desculpou e Cameron o perdoou; vida que
segue. Mas eu me pergunto o que aconteceria aqui, se pensarmos que o comediante
Leo Lins foi condenado a oito anos de prisão por uma piada. Oito anos! Por uma
piada! Pendurado em praça pública para todos verem (e aprenderem).
Na semana que termina, o STF formou maioria para
restringir ainda mais a liberdade de expressão on-line. Antes disso, uma
jornalista do gaúcho Zero Hora foi condenada a pagar uma indenização de R$ 600
mil por ter divulgado e criticado o salário (que é informação pública) de uma desembargadora.
Um jornalista do Metrópoles está sendo investigado por algumas reportagens
sobre o patrimônio de um delegado da polícia. O TSJ condenou a IstoÉ e dois de
seus jornalistas por danos morais por uma reportagem que cita Gilmar Mendes.
Em 2016, esta Gazeta do Povo publicou uma
reportagem sobre salários acima do teto recebidos por juízes e promotores. A
reportagem não dizia que a prática era ilegal, e todos os dados usados eram
públicos. No entanto, juízes e promotores iniciaram uma onda de mais de 30
processos, pulverizados em diversas cidades, com ações todas iguais. Os cinco
jornalistas citados tiveram de percorrer 6,3 mil quilômetros para ir a 15
cidades.
“Já faz décadas que existem temas tabu como etnia,
gênero, orientação sexual e meio ambiente. Agora somaram-se à lista vacinas,
urnas eletrônicas, golpe, minorias organizadas... e juízes”
Não se trata de casos isolados. Um relatório da
Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) identificou um aumento de 120% nos
casos de censura judicial, de 2023 para 2024. No ranking de liberdade on-line
da Freedom House, o Brasil está entre os países ditos “parcialmente livres”, em
65.º lugar entre 100 nações. No ranking de liberdade de imprensa dos Repórteres
sem Fronteiras, o Brasil está na 63.ª posição entre 180 países.
Nos últimos anos, especialmente a partir do
inquérito das fake news (apelidado de “inquérito do fim do mundo”), a coisa vem
piorando. Nem seria preciso falar do famoso artigo da Crusoé sobre “o amigo do
amigo de meu pai”, até porque o fenômeno não é de agora; já faz décadas que
existem temas tabu como etnia, gênero, orientação sexual e meio ambiente. Agora
somaram-se à lista vacinas, urnas eletrônicas, golpe, minorias organizadas... e
juízes.
A sanha de processar todo mundo por falas ou por
qualquer mínimo deslize sempre existiu; o leitor também deve ter sentido esse
medo ao dizer algo politicamente incorreto, porque alguém invariavelmente se
sente ofendido. É uma mistura de “mimimi” com incentivos perversos da indústria
de processos com advogados de quarto escalão. “Ele me ofendeu”, dizem; errado:
ninguém o ofendeu, é você que se sentiu ofendido. Há quem se ofenda, há quem
não esteja nem aí e há até quem ria. É uma fraqueza, normal e legítima, mas não
passa disso. Todas as vezes que ouço a palavra “constrangido”, sei que vem
besteira por aí. O constrangimento tem uma função social importantíssima: é a
pressão dos pares, serve para tomar vergonha na cara, é educativo, é uma forma
de educar as pessoas sem recorrer à violência e a custosos processos judiciais.
Na obra Patrimonialismo e a realidade
latino-americana, Ricardo Vélez Rodríguez mostra que uma das características
dos sistemas patrimonialistas (como o brasileiro, o russo e o dos países
árabes) é calar o dissenso. Temos que celebrar por não cair de uma janela ou
não tomar um chá envenenado, como na Rússia; ou por não tomar chibatadas, como
nos países árabes; mas temos de reconhecer a situação. Não somos cidadãos,
somos súditos.
Em parte, trata-se de mero oportunismo para
reprimir a direita; em parte trata-se de patrimonialismo; e, em parte, esta
também é uma questão social. Há uma parcela de gente que concorda em calar o
dissenso. Gente autoritária, intolerante, que sinceramente acha que as pessoas
têm de ser processadas por falas. Gente que faz o trabalho do Leviatã para ele
– e de graça, ainda! –, denunciando o próximo. Gente que foi domesticada para
delatar e judicializar. Há uma cultura política autoritária. A Divisão de
Censura de Diversões Públicas (DCDP) da ditadura militar ainda está entre nós.