Por Severino Francisco
Confesso que sou um usuário. Não disso que vocês estão pensando, mas sim do transporte público. Circulo muito de ônibus e, em um desses deslocamentos, deparei-me com André Correia, um ex-aluno do curso de jornalismo e ex-colega de redação. Perguntei em que jornal estava trabalhando, me respondeu que havia mudado de profissão e agora era professor de educação física no Lago Paranoá. Estudou jornalismo, mas o esporte aquático estava no sangue e, ao fazer um trabalho de escola sobre um plano de negócio, concebeu uma empresa de instrução de remo. Isso o levou até o curso de educação física.
O avô
havia sido campeão de remo no Rio de Janeiro; o pai é uma das pessoas que
trouxe o remo para Brasília. Agora, André passa boa parte de sua vida dentro do
Lago Paranoá. De minha parte, sou um animal do deserto e sofro com a miragem da
água. Mas, para mim, o Lago é apenas uma paisagem. Por isso, fiquei com muita
curiosidade de conhecer a visão de quem vive dentro da paisagem, sente a sua
pulsação, convive com os bichos, sabe dos perigos e experimenta os seus
êxtases.
“O que é
esse Lago para você?”, pergunto. “É uma joia, é uma maravilha!”, responde
André, com entusiasmo: “Garante o equilíbrio ecológico do brasiliense. Talvez
sem esse Lago, Brasília fosse ainda mais árida, pois o cerrado foi muito
devastado. O Lago dá um alívio”.
Digo ao
André que desconfio da poluição do Lago, mas ele discorda: “Nos primeiros
tempos, não houve um processo de retiradas das árvores. A matéria orgânica
apodreceu e a gente sentia o mau cheiro de longe. No entanto, agora existem
poucos pontos isolados de poluição, como é o caso da área próxima à estação de
tratamento de esgoto, no fim da Asa Norte”.
Ao
percorrer o Lago, André se depara com lugares em que a água é translúcida. É
uma Brasília diferente que se apresenta. Os biguás, os mergulhões e as garças
fazem a festa para os olhos. Encontra muitas famílias de capivaras, jacarés em
locais isolados e já avistou uma ariranha: “Algumas vezes, o pessoal que faz
pedalinho vê uma cabeça de bicho repontando na água e se assusta pensando que é
cobra, mas são pequenas tartarugas”.
O Lago me
parece um lugar traiçoeiro. Onde mora o perigo? “Sim, você tem razão. É porque
você tem uma visão plana na beira da Prainha, mas, se vai para o meio da Ponte
Honestino Guimarães, a profundidade e o volume de água aumentam. Muita gente já
morreu afogada por ali. É porque o relevo acompanha a descida por onde passava
o Rio Paranoá. Sempre recomendo que se nade só nas margens.”
A
liberação da orla estimulou um movimento de ocupação da beira do Lago. André
prevê que a área se transformará em um território de lazer semelhante ao que é
hoje a Água Mineral. Todavia, até lá existe um longo caminho a percorrer:
“Primeiro, o poder público precisa oferecer mais áreas urbanizadas ao Lago. Ele
não está preparado para receber pessoas. Depois, é preciso investir pesado em
educação. Você sabe, educação é tudo”.
André diz
que um dos instantes de maior alumbramento acontece quando o céu desce e se
mistura com o Lago nas alvoradas e nos poentes. É um momento de beleza
sobrenatural.
Desembarquei
no meu ponto, André seguiu viagem e fiquei pensando: para mim, o Lago é uma
entidade mítica. Tivemos até a nossa Atlântida soterrada: a Vila Amauri. É o
Lago que me dá a ilusão de que o sertão virou mar.
(*) Severino Francisco, é colunista do Correio Braziliense – Foto: Marco
Mota - Descrição: Amanhecer no Lago Sul próximo da Ponte
Costa e Silva - Ilustração: Blog - Google -