test banner

#Pioneiro - Conheça a trajetória do homem que revolucionou a pediatria do DF

Antônio Márcio Junqueira Lisboa trocou um consultório de luxo no Rio de Janeiro para desbravar a medicina em uma Brasília recém-inaugurada em que faltava tudo
Por Luiz Calcagno, 
Sentado atrás de uma mesa, em um consultório simples, bem iluminado e aconchegante, o pediatra Antônio Márcio Junqueira Lisboa, o doutor Lisboa, 90 anos, fala da vida. As paredes do local, montado para atender as crianças em casa, na QI 13 do Lago Sul, estão tomadas por registros. Diplomas, certificados, elogios, premiações e fotografias com nomes da área médica internacional disputam a atenção do observador curioso. Ele pisca os olhos enquanto discorre com lucidez sobre as inúmeras batalhas travadas. Com piadas certeiras e uma pitada de nostalgia, mostra os 16 livros e os mais de 400 artigos publicados. Relata as incontáveis memórias do tempo de infância em Leopoldina (MG), nos idos de 1930, e a aventura de vir para o Distrito Federal fundar, com outros médicos, a Faculdade de Medicina de Brasília, em 1967, deixando para trás o segundo maior consultório de pediatria na capital do Rio de Janeiro, um sonho realizado.

Doutor Lisboa formou-se aos 23 anos e trabalha como pediatra há 67. Aposentou-se em 1994, mas não parou. Viu pacientes se tornarem adultos. Depois, tratou os filhos dessas pessoas e, agora, os netos. De geração em geração, nunca parou de estudar e se atualizar. Considera os modernos cursos de medicina “capengas”. Explica que, além do físico, o profissional deve cuidar do mental e do social. A dedicação às crianças se reflete, inclusive, no carinho com que fala da própria infância, época em que, se perguntado sobre o que queria ser quando crescer, respondia que “qualquer coisa, menos médico”. Filho, sobrinho e neto de médicos, tinha pavor de sangue. Quase desmaiou certa vez, ao tentar acompanhar uma cirurgia. Foi amparado pelo futuro sogro. Cresceu em um lar de diálogo e amor, e sem nenhuma palmada — uma, na verdade, aos 4 anos, por ter xingado a avó.

No livro Memórias de um pediatra, o doutor Lisboa passeia entre lembranças e reúne acontecimentos da infância até a vida adulta e a velhice. Já nas primeiras histórias, leva o leitor a refletir sobre a ternura de um menino que, se por um lado dizia que não seria médico, por outro, mostrava um profundo amor pela vida, descoberto, às vezes, de maneira trágica. Gostava de fazer coleções, jogar futebol de botão, era fã de faroestes e atirava em “índios e ladrões” com armas de espoleta. “Fui ‘morto’ inúmeras vezes, ‘matei’ vários companheiros.” Aos 9 ou 10 anos, ganhou uma espingarda de chumbo. Mirou em uma pomba. Disparou. O animal levantou voo e caiu. “Do seu corpinho, branco como a neve, corria um filete de sangue. Ela agonizava”, escreveu nas primeiras páginas do livro. No mesmo dia, devolveu o brinquedo.

Doutor Lisboa cuidou de filhos de muitos médicos. Inclusive a de Jacques Bulcão, um de seus melhores amigos na Faculdade Nacional de Medicina, no Rio de Janeiro, onde se formaram. A pequena era Lúcia Bulcão de Oliveira, hoje com 59 anos. “Saíamos eu, minha namorada, com quem depois eu me casei, o Jacques, a namorada dele, mãe de Lúcia, de Fusquinha, para a Barra da Tijuca, para namorar no pontão”, lembra, sorrindo. “Ele não era apenas pediatra. Era como um tio. Cresci, mas nunca nos afastamos. Depois tive três filhos, hoje com 34, 38 e 40 anos. Todos acompanhados por ele”, completa Lúcia. As poucas vezes em que a família precisou procurar outro profissional, porque o da família estava viajando, ficou insatisfeito. (Vídeo),
O caçula de Lúcia, João Ricardo Bulcão de Oliveira, foi o último dos três irmãos tratados pelo pediatra. Hoje, casado com Marina Lamego Bulcão, 35, tem duas filhas: Maria Clara, 3 anos, e Antônia, de 10 meses. A mais velha chegou a ser atendida por outro médico quando nasceu, mas acabou sob os cuidados do doutor Lisboa. Só ele soube como lidar com uma série de alergias que a bebê sofria. “Não posso nem dizer que escolhemos o doutor Lisboa. Era um caminho natural e incontestável, não tinha como ser diferente”, explica João Ricardo. “Ficava muito aflita nesse começo. O doutor foi um verdadeiro alívio. Ele me atende a qualquer momento e conhece minha voz ao telefone”, destaca Marina.

Pediatra de guerrilha
Entre as memórias mais queridas de Antônio Márcio Junqueira Lisboa, está a vinda para a capital federal, em 1º de março de 1967, o que provocou uma drástica mudança na vida do profissional. Ele era proprietário da segunda maior clínica de pediatria do Rio. Gastou todas as economias para montar o estabelecimento de luxo, contava com um corpo técnico bem preparado e tinha um ótimo retorno financeiro. Apesar disso, era acossado pela vontade de lecionar em uma universidade, mas discordava da forma como a profissão era ensinada. Na capital carioca, as cadeiras do curso eram ocupadas por professores antigos e adeptos do currículo criticado por ele. Sem vislumbre de possibilidades, em 11 de janeiro daquele ano, o pediatra recebeu o convite para ajudar a fundar a Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB). Teria como implementar as próprias ideias na área de pediatria, mas não gostava de Brasília, mesmo sem conhecer a cidade.

A visita à nova capital foi suficiente para desfazer-lhe o preconceito. Voltou para o Rio com os filhos matriculados no Colégio São Bento. Largou tudo o que construiu em nome de um sonho. “Eu ganhava o equivalente a R$ 12 mil. Passei a ganhar o equivalente a R$ 1,2 mil.” Trocou a posição consolidada pela dedicação exclusiva, a equipe de colegas bem formados por residentes ainda inexperientes, e a clínica de luxo pelo Hospital Universitário de Brasília, que funcionava no Hospital Rural de Sobradinho — um barracão de madeira com um museu de répteis, insetos e animais peçonhentos encontrados na unidade. Entre os inúmeros desafios, o pediatra precisava reduzir o número de mortes de bebês prematuros internados no local. Também passou um ano comendo em mesas improvisadas na sala do apartamento, na 313 Sul, pois os móveis chegaram um ano depois da data prevista. “Tive que vender o consultório para ter dinheiro”, sorri (leia depoimento).

Em maio, mudaram-se para a Unidade Integrada de Saúde de Sobradinho e continuaram os trabalhos. O Doutor Lisboa separou os recém-nascidos em função do risco — alto, médio e baixo — e, posteriormente, colocou os mais saudáveis com as mães. Ainda no Rio, foi o primeiro pediatra a atender um recém-nascido ainda na sala de parto no Brasil e, também, formou os primeiros neonatologistas do país. No Hospital Universitário, implementou o mesmo sistema e, na UnB, criou a disciplina de neonatologia. Foi autor do projeto Mãe Acompanhante, que permitia que as mães ficassem no hospital com os filhos internados, o que ajudou na recuperação de inúmeras crianças. Designava estagiários do curso de medicina para as periferias, entre elas, a Fercal, para que conhecessem os pacientes em seu contexto social. Os avanços seguiam a passos largos até o então vice-reitor da UnB, o militar José Carlos Azevedo, decidir deter o progresso.

Sob pressão para reduzir as atividades no meio acadêmico, doutor Lisboa entrou com uma ação trabalhista contra a UnB. Como resposta, teve o filho preso pela Polícia Federal. “Ele foi sequestrado, preso, torturado e liberado com um pedido de desculpas para ele, para minha mulher e para mim. Resolvi sair da universidade até que o reitor fosse afastado”, recorda-se. Prestou concurso para a Secretaria de Saúde do DF e foi aprovado. Somente em 1986 retornou ao câmpus. Ao fazer uma retrospectiva desses 67 anos de profissão, não tem arrependimentos. “Ao vir para cá, do ponto de vista profissional, eu fiz muito mais pela criança.” E arremata: “É uma gratificação que, a meu ver, não tem preço”.



(*) Por Luiz Calcagno – Foto: Jhonatan Vieira/CB/D.A.Press – Correio Braziliense



1 Comentários

Postagem Anterior Próxima Postagem