Pedaço
de um tempo
*Por Circe Cunha
Naqueles longínquos dias de abril de
1964, Brasília, com apenas 4 anos, foi transformada, da noite para o dia, em
uma pequena órfã, perdida e desolada na imensidão poeirenta e vermelha do
Centro-Oeste. A chegada repentina dos militares ao poder, na sequência natural
dos acontecimentos que marcavam a Guerra Fria, provocara uma reviravolta de tal
monta na administração da cidade que, por longo tempo, todas as repartições
públicas ficaram como que suspensas no ar.
A própria concepção arquitetônica da
cidade, espalhada pelos quatro cantos pelos novos ocupantes do Palácio do
Planalto, era obra de um comunista convicto a serviço de um outro sujeito,
também suspeito de nutrir simpatias com a então odiosa União Soviética.
Portanto, sob o comando dos novos donos do poder, era preciso uma higienização
rápida na nova capital, a começar por aqueles que ocupavam os mais altos cargos
da gestão local.
Numa situação como essa, na qual a
improvisação era a norma geral, ninguém sabia ao certo quem seriam os novos
administradores da cidade. No longo vácuo de poder que se seguiu, nem sequer os
salários do mês estavam garantidos.
Em todo canto e nas rodas de
conversa, o assunto era quem sobreviveria e quem seria defenestrado. Nesse
impasse e sob a aparência de normalidade, a vida das pessoas mais simples
seguia seu rumo. Era um tempo de muitas construções na cidade e, na vida
simples de muitos operários, o tema era tratado como assunto que dizia respeito
apenas à gente rica e poderosa, portanto, distante da realidade dura dos trabalhadores.
No entanto, nas repartições públicas, que àquela altura estavam instaladas na
nova capital, a rotina diária era discutir que rumos a revolução verde-oliva
apontaria para todos. Obviamente, aqueles que tinham qualquer laço de
aproximação com os chamados comunas sentiam um frio de suspense subindo pela
barriga.
Naquela ocasião, para ser apontado
pela alcaguetagem geral como comunista e subversivo, bastava ao indivíduo
possuir um exemplar dos poemas de Ho Chi Minh ou o manifesto de Marx, mesmo que
jamais tivesse lido uma linha sequer. Sob esse prisma, todos eram comunistas
até que provassem o contrário.
Não foram poucas as pessoas que,
avisadas sobre a chegada da revolução, aproveitavam as noites escuras da cidade
para incinerar às pressas qualquer prova material de simpatia com o socialismo.
A avenida L2 Norte, que se estendia somente até a Quadra 405, era o caminho
natural para aqueles que se dirigiam para a Universidade de Brasília (UnB),
ainda parcialmente construída.
Havia naquela região, próximo ao que
é hoje o Hospital Universitário (HUB), o Centro Integrado de Ensino Médio
(Ciem), ligado à UnB. Naqueles dias distantes e de incertezas, uma bandeira
negra estava hasteada no alto da caixa-d’água da instituição. Lá dentro, uma
turma de estudantes se encontrava amotinada havia dias, fazendo uma espécie de
resistência pacífica ao desmantelamento político que se anunciava com certa
ferocidade. Eram tempos de dúvidas, movidos por um certo romantismo, com a
juventude buscando imitar os movimentos vitoriosos de Guevara e Cienfuegos, sem
medir as consequências que adviriam em desafiar os novos mandantes
uniformizados.
Lá fora, deitados no asfalto, sob a
proteção improvisada dos meios-fios da estrada, uma fileira de soldados, com
suas metralhadoras sobre tripés, estava de prontidão para invadir o prédio a
qualquer momento. O impasse da invasão iminente só restou resolvido quando
chegou ao conhecimento do comando daquele destacamento que, no interior do
prédio havia, entre os revoltosos, muitos filhos de autoridades, inclusive de
militares. Ao menos nesse caso, o salvo-conduto para uma rendição foi feito sem
feridos. A pele dos companheiros dos fidalgos estava salva.
No restante da cidade, os expurgos
aconteciam sem muito alarde e eram alimentados com a boataria geral. Com medo,
muita gente abandonou o emprego e resolveu desaparecer, voltando anônimo à
cidade natal. Alheios a um mundo que se esfacelava sob seus pés, a gurizada
naquela época aproveitava a vida como podia, tomando banho e navegando sobre os
muitos tocos de árvore que boiavam no lago ou nadando no espelho d’água que
circundava o Departamento de Pedagogia na UnB.
A partir dessa hora, a cidade
mergulhava num sono pesado, envolta num breu e num silêncio que dava medo e que
aumentava com os presságios de que, na calada da noite, as tropas viriam para
levar o que supunham ser insurgentes e contra o regime. De fato, a população
não era contra a chegada dos militares por um simples motivo: ninguém sabia ao
certo o que era o novo regime militar e muito menos o que significava. Para uma
população pouco ilustrada, o que se esperava, noite após noite, era a chegada
de qualquer coisa que quebrasse a rotina de uma cidade deserta.
A
frase que não foi pronunciada
“Brasília tem mais futuro do que passado.”
(Adirson
Vasconcelos)
(*)
Circe Cunha – Coluna “Visto, lido e ouvido”- Ari Cunha – Correio Braziliense-
Foto/Ilustração: Blog - Google